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Poema IV - O Guardador de Águas, Manoel de Barros


O que ele era, esse cara
Tinha vindo de coisas que ele juntava nos bolsos -
por forma que pentes, formigas de barranco, vidrinhos
de guardar moscas, selos, freios enferrujados etc.
Coisas
Que ele apanhava nas ruínas e nos montes de borra de
mate ( nos montes de borra crescem abobreiras
debaixo das abobreiras sapatos e pregos engordam...)
De forma que recolhia coisas de nada, nadeiras, falas
de tontos, libélulas - coisas
Que o ensinavam a ser interior, como silêncio nos
retratos.
Até que de noite pôs uma pedra na cabeça e foi embora
Estrelas passavam leite nas pedras que carregava.
Vagou transpedregosos anos.
Se soube que atravessou Paris de urina presa.
Estudou anacoreto.
Afez-se com as entradas e o cheiro de ouro dos
escaravelhos.
Um dia chegou em casa árvore.
Deitou-se na raiz do muro, do mesmo jeito que um rio
fizesse para estar encostado em alguma pedra.
Boca não abriu mais?
Arbora em paredes podres.

Em: O Guardador de Águas, Manoel de Barros, Alfaguara 2017, pág. 18
Imagem: desenho de Manoel de Barros. Pág. 91

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