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Trova do Vento Que Passa, poema de Manuel Alegre ( citado pela Ministra Carmem Lúcia)

Pergunto ao vento que passa Notícias do meu país E o vento cala a desgraça O vento nada me diz. O vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam Tanto sonho à flor das águas E os rios não me sossegam Levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas Ai rios do meu país Minha pátria à flor das águas Para onde vais? ninguém diz. [se o verde trevo desfolhas Pede notícias e diz Ao trevo de quatro folhas Que morro por meu país. Pergunto à gente que passa Por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem Quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos Direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos Vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada Ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada Nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem Dos rios que vão pró mar Como quem ama a viagem Mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) Vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada E fale pátria...

Cantiga Pequenina, poema de Thiago de Mello

A noite é linda, Isabella, quando serve de acalanto ao dia que vai nascer. É feia a noite, Isabella, quando a sombra esgarça a festa do verão no amanhecer. Estou no centro da noite: comigo, na minha mão, a canção da tua vida me ensinando a caminhar na mais clara direção do homem: saber amar. Em: Poesia Comprometida com a minha e a tua vida.  Ed. Civilização Brasileira, 1992, pág.75

História Passional, Hollywood, Califórnia - poema de Vinícius de Moraes

Preliminarmente telegrafar-te-ei uma dúzia de rosas Depois te levarei a comer um shop-suey Se a tarde também for loura abriremos a capota Teus cabelos ao vento marcarão oitenta milhas. Dar-me-ás um beijo com batom marca indelével E eu pegarei tua coxa rija como a madeira Sorrirás para mim e eu porei óculos escuros Ante o brilho de teus dois mil dentes de esmalte. Mascaremos cada um uma caixa de goma E iremos ao  Chinese  cheirando a hortelã-pimenta A cabeça no meu ombro sonharás duas horas Enquanto eu me divirto no teu seio de arame. De novo no automóvel perguntarei se queres Me dirás que tem tempo e me darás um abraço Tua fome reclama uma salada mista Verei teu rosto através do suco de tomate. Te ajudarei cavalheiro com o abrigo de chinchila Na saída constatarei tuas  nylons 57 Ao andares, algo em ti range em dó sustenido Pelo andar em que vais sei que queres dançar rumba. Beberás vinte uísques e ficarás mais terna Dançando sentirei tuas pernas entre as minhas Cheirarás ...

Noite de Almirante, conto de Machado de Assis

  Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo: - Ah! Venta-Grande!  Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva... Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior. A velha Inácia, que...

Meu Nome É Carolina, conto de Natascha Duarte

      A festa junina da escola é um acontecimento esperado por todos, o ano inteiro. Cada membro da organização da festa recebe uma tarefa planejada e cumprida com rigor. Da parte alimentar, cuida dona Olinda, a merendeira que há 30 anos trabalha na escola; da música, o locutor da Prefeitura que nas horas vagas faz bicos como DJ; da coreografia, a professora de Artes, Isabela; e a João, o diretor, cabe punir exemplar mente os alunos do primeiro ao quinto ano que faltem aos ensaios da quadrilha. Aninha está já na sexta série. Para ela, portanto, é facultativo participar da dança. Para os menores, porém, a atração é uma sugestão imperiosa, senão a festa dei xa de existir. Ora, basta os que não a frequentam por razões religiosas se juntarem aos queixosos de plantão, aqueles que reclamam do preço, da hora, do dia, da indumentária, das músicas, etc., que a festa desaparece do mapa num estalo de traque. Com vontade de correr para adiantar o tempo, a menina chega à...

Vamos Pensar? (27) Hannah Arendt

   “Mentir constantemente não serve mais para fazer as pessoas acreditarem em uma mentira, mas p ara garantir que ninguém acredite em nada.” A filósofa alerta para o perigo de uma sociedade mergulhada na desconfiança, onde a manipulação das narrativas não visa apenas enganar, mas anular a própria capacidade de distinguir entre verdade e falsidade. Esse estado de confusão fragiliza os vínculos sociais, mina a ética e abre espaço para regimes autoritários que se alimentam do descrédito coletivo. Mas o que acontece com uma comunidade quando a fronteira entre verdade e mentira deixa de existir? Nesse cenário, a perda da confiança transforma-se em descrença generalizada, tornando os indivíduos incapazes de julgar o que é justo ou injusto. A verdade deixa de ser parâmetro, e o bem e o mal tornam-se categorias maleáveis, moldadas pelo poder de quem controla o discurso. Arendt nos mostra que o maior perigo não é a mentira em si, mas a erosão da confiança pública, que enfraquece a libe...

16 crônicas de Luís Fernando Veríssimo.

  16 crônicas de Luís Fernando Veríssimo   1 -  Dia de Ressaca , fevereiro de 2015 2 -  Outra de Elevador  junho de 2024 3 -  Tu e Eu   dezembro de 2023 4 -  Futebol de Rua  novembro de 2022 5 -  Conto de Verão Número 2: Bandeira Branca  janeiro de 2025 6 -  Conclusão  outubro de 2020 7 -  A Mulher Que Caiu do Céu  abril de 2024 8 -  Alto Nível  fevereiro de 2012 9 -  Pai Não Entende Nada,  agosto de 2012 10 -  Conto Erótico  agosto de 2011 11 -  O Estranho Caso da Repórter Que Perguntava  abril de 2013 12 -  Outra Carta de Dorinha  janeiro de 2016 13 -  O Travesseiro de Lenny Bruce  maio de 2022 14 -  Budum Filho  janeiro de 2012 15 -  Aprenda a Chamar a Polícia  maio de 2019 16 -  O Tridente  abril de 2018

Assim Termina o Livro Que Eu Terminei:

     Sabemos, por entrevistas, que Nafissatou Diallo ficou magoada quando as acusações criminais foram arquivadas. Uma reação esperada e compreensível.  Mas a imaginação artística também é o mundo do "e se" . E se em vez de ficar devastada, ela visse o arquivamento das acusações como uma maneira de escapar de um sistema que sabia que não estava configurado para beneficiar pessoas como ela? E se ela visse isso como um alívio complicado, tendo-lhe sido negada a chance de fazer justiça, mas também como o ganho de possibilidade de recuperar sua vida, congelada no gelo do desconhecido?      Às vezes quando escrevemos ficção, momentos mágicos caem do céu, personagens se mostram e partes reveladoras formam cenas, como aconteceu no fim deste comance. Fiquei profundamente comovida com aquele final gestado no terreno selvagem da dor pessoal e, ainda assim, tão afastado da dor.      Minha mãe, acho, teria gostado sa personagem Kadiatou. Eu a imagin...

100% Classe Média, crônica de Antonio Prata

     "Nós somos ricos?" perguntei à minha mãe, aos cinco anos. Eu achava que sim. Afinal, para mim, os pobres eram aquelas pessoas  que eu via com prematura angústia, através do vidro de nosso Passat verde-musgo, na pequena favela Juscelino Kubitschek, perto de casa. Minha mãe disse que não éramos ricos nem pobres, éramos de classe média.      Achei o termo meio nebuloso e confesso que só fui entendê-lo realmente, em suas profundas implicações socioexonômicas-culturais, na última terça, durante o banho, quando o vizinho de cima deu a descarga e a água do meu chuveiro pelou. Eu gritei um palavrão, abri mais a torneira e, quando minhas costas voltavam a uma temperatura suprtável, pensei:ah, então é isso.      Ser de classe média significa ter uma proximidade compulsória com os outros e, consequentmente, estar em constante negociação com o mundo. Afiinal, você não está entre a minoria que dita as regras, nem junto à massa que apenas as segu...

Amazônia, melodia de Artur Nogueira e letra de Antônio Cícero

Não queira que eu cante a selva ou o rio Amazonas, cujo silêncio a fluir às minhas costas no entanto escuto às vezes, imerso em trevas. Nas veias, é certo, corre o sangue selvagem das amazonas, e os meus traços caboclos traem os maranhões; mas trago, como herança ancestral, não saudade da floresta, mas da cidade almejada A Amazônia quer versos heroicos e épicos, não os meus, líricos, eróticos, céticos. recordo e esqueço como é que, porventura, me perdi dos meus ancestrais. Que não me guardem mágoa nossas amazonas mas toda origem é forjada no caminho cujo destino é o meio. Feito o Amazonas, surjo do deserto, mas dos afluentes eu escolho as águas.

Mulheres da Fuvest (8): Júlia Lopes de Almeida - UFRGS resgata seus contos.

A escritora  carioca Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida (1862-1934), era uma mulher à frete do tempo.  Na época dela não se via mulher no ofício de escritora, como também não em muitas outras atividades, claro. Mas ela escrevia em jornais e  em 1887, lançou o livro “Contos infantis”. Ao todo, Júlia Lopes de Almeida escreveu uns 10 romances. Ela era casada com o poeta português Filinto de Almeida (1857-1945), cofundador da ABL.  Júlia foi uma das idealizadoras, ajudou a criar a Academia, mas foi barrada. Quando os "imortais" foram recebendo suas cadeiras, Júlia Lopes foi barrada. Tinha cérebro, talento, idealizou a instituição, mas "infelizmente" sofria de um defeito gravíssimo: era mulher.  Foi substituida pelo marido.  A cadeira número 3 ficou com o poeta português Filinto de Almeida.  A Fuvest, na tentativa de se desculpar por anos de machismo em que só trazia homens nas suas listas de livros indicados, coloca  Memórias de Martha , qu...

Assim Começa o Livro Que Eu Comecei: A Contagem dos Sonhos, Chimamanda Ngozi Adichie

     Sempre desejei que outro ser humano me conhecesse de verdade. Às vezes, passamos anos convivendo com anseios que não conseguimos nomear. Até que a fenda surge no céu, se alarga e nos reela para nós mesmos, como a pandemia fez, pois foi durante o confinamento que comecei a esquadrinhaar minha vida e a dar nome a coisas há muito não nomeadas.  No começo, jurei que aproveitaria ao máximo esse isolamento coletivo; se a ínica escolha era ficar em casa, então eu iria passar óleo todos os dias nas pontas cada vez mais finas de meu cabelo, beber oito grandes copos d'água, correr na esteira, me dar ao luxo de dormir muitas horas e massagear meu rosto com séruns caros. Escreveria novas matérias a partir de anotações de viagens antigas que nunca tinha usado e, se o confinamento durasse tempo suficiente, talve finalmente tivesse fôlego necessário para escrever um livro Mas em pouco tempo, já estava dando voltas dentro de um poó sem fundo. Era um turbilhão de palavras e aler...

Mulheres da Fuvest (7): Rachel de Queiroz, Caminho de Pedras

     Na Fortaleza dos anos 1930, durante a Era Vargas, Roberto tem a missão de recrutar operários para uma nova célula de esquerda. Uma das pessoas que se interessam é Noemi: mãe de Guri e casada com um homem que não ama mais, ela está em busca de algo que a faça se sentir viva. Nas reuniões do partido, Noemi e Roberto desenvolvem uma conexão intelectual intensa, que os leva a um caso amoroso. Ela se vê, então, testando novos limites morais e éticos, tanto no campo do amor quanto no da política. Expressão de um socialismo libertário que poucas vezes voltaria a aparecer nos textos de Rachel de Queiroz,  Caminho de pedras  é considerado seu romance mais engajado. Neste livro, aparecem as primeiras demonstrações de um estilo mais introspectivo e de análises psicológicas que alicerçam cenas de forte intensidade emocional. Um arranjo arguto para contar a história de uma paixão proibida inflamada pela luta. Em  Caminho de pedras , Rachel de Queiroz nos revela a f...

Use A Passagem Subterrânea, conto de Lêdo Ivo

     Da esquina, dirigi-me diretamente para a amurada da praia. Era pouco mais de meio dia, e a claridade doía-me nos olhos. Eu me sentia incomodado pelo resplendor da paisagem, que me sonegava sinais luminosos, ramos de árvores, calotas de automóveis, uma verruga no rosto lívido de um guarda-civil. No íntimo, desejava que tudo estivesse ao alcance de minha observação, para poder usufruir a totalidade do instante. Fulgindo e refulgindo, o tempo que eu ia atravessando, enquanto meus pés se moviam no asfalto da alameda, parecia negacear, desviar-se de mim como uma onda va dia no mar grande. E eu ia avançando.      Sentia achar-me do lado de fora das coisas e da vida. A ambulância passou pela outra alameda e as crianças de um ônibus escolar começaram a imitar a sereia roufenha. Vi também o mendigo. Estava alinuma das primeira linhagens da terra catando alguma coisa no chão. Mas tudo isso passava por mim sem me abalar: coisas turbulentas, era como se fossem sob...