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Mostrando postagens com o rótulo Solidão

Tempo Morto, conto de Gilvan Lemos

     Um poço fundo, lama revolvida. Borbulhas de calda grossa, abulição de doce no ponto. Passos solitários na calçada, os pés de não se sabe quem recompondo sombras. Lamentos de criança em noite alta. Um velho fitando a torre da igreja. Não sei por que me vêm essas imagens. A secretária tinha dito: Mencionou apenas o nome, disse que o senhor sabia de quem se tratava. Pedi-lhe tempo: aviso quando puder recebê-la. Preparava-me? tomava fôlego?      Denise. Nossas casas confrontes na rua estreita, a dela assombrada. Da minha, através da vidraça, eu a via chegando à varanda, quando um ruído qualquer despertava-lhe a curiosidade, ou no vagar dum cigarro nostálgico. Por que nostálgico? Pela conotação do termo desusado ( por isso mesmo ingenuamente romântico), pela necessidade que eu lhe emprestava de superar-se do tédio, satisfazer-se do amor que eu lhe daria. Pensamos sempre que quem amamos é que precisa de nós.      Momentaneamente os carros pas...

Faz Anos Navego No Incerto, poema de Caio Fernando Abreu

Faz anos navego o incerto. Não há roteiros nem portos. Os mares são de enganos e o prévio medo dos rochedos nos prende em falsas calmarias. As ilhas no horizonte, miragens verdes. Eu não queria nada além de olhar estrelas como quem nada sabe para trocar palavras, quem sabe um toque com o surdo camarote ao lado mas tenho medo do navio fantasma perdido em pontas sobre o tombadilho dou a face e forma a vultos embaçados. A lua cheia diminui a cada dia. Não há respostas. Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração como uma âncora."

O Alienígena, humor de Gherard Haderer

 

Sozinho no Bar, crônica de Aluizio Falcão

     Nove da noite no bar Bohemia. Movimentadíssimo na madrugada este bar, em horas cristãs, tinha  um silêncio de mosteiro. Na mesa  ao lado, um jovem casal is tocando sua conversinha em voz baixa, mas eu podia ouvir claramente. Ele dizia que era da Mooca e nem precisava dizer, o sotaque revelava. A moça era do interior, informação também desnecessária, dado o erre esticado em certas sílabas, tão presente na fala caipira de São Paulo. Eu acompanhava a conversa discretamente, sem olhar, como quem ouve um programa de rádio. O rapaz se esforçava para impressionar, dizia que gostava de ler, desfiava títulos best-sellers. A namorada, modesta, nem se lembrava do último livro que lera, comentava a novela das oito. Depois, graças a Deus, abandonaram os temas estéticos. Enveredaram pelos floridos caminhos da intimidade. Ela disse "eu te gosto"com voz trêmula, e senti uma vaga inveja por serem tão jovens e tão felizes. Onde estarão hoje, passados tantos anos? Fico a imag...

Se Ter, Bráulio Bessa

Ir sozinho ao cinema visitar uma livraria uma cerveja no bar um café na padaria. Ter você para você mesmo também é ter companhia. Nem sempre estar sozinho é sinal de solidão. Vez por outra o mundo chama e a nossa resposta é não, por ter marcado um encontro com o próprio coração. Em: Um Carinho Na Alma , Bráulio Bessa.

Retrato de Mulher Triste, Cecília Meireles

Vestiu-se para um baile que não há. Sentou-se com suas últimas jóias. E olha para o lado, imóvel. Está vendo os salões que se acabaram, embala-se em valsas que não dançou, levemente sorri para um homem. O homem que não existiu. Se alguém lhe disser que sonha, levantará com desdém o arco das sobrancelhas, Pois jamais se viveu com tanta plenitude. Mas para falar de sua vida tem de abaixar as quase infantis pestanas, e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas. Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)' Imagem: Bent Figure of a Woman 1882 - Van Gogh

Vamos Pensar: O Louco, Kalil Gibran (2)

Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim: Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas. sim, as sete máscaras que para mim tinha fabricado e utilizado nas minhas sete vidas. corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando: - Ladrões, ladrões, malditos ladrões! Homens e mulheres riram-se de mim e alguns fecharam-se em casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um rapaz que estava de pé no telhado da casa, gritou apontando-me com o dedo: - É um louco! Ergui os olhos para o ver, O sol banhou o meu rosto despido e a minha alma encheu-se de amor ao sol, e desde então nunca mais quis usar máscara. Depois gritei como se estivesse em transe: - Benditos, benditos os ladrões que me roubaram máscaras!” Foi assim que me tornei louco. encontrei muita liberdade e segurança na minha loucura; a liberdade da solidão e a segurança de nunca ser compreendido, pois aquele q...

A Solidão Amiga, Rubem Alves

  A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão... Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, ...

Se Pudesses, Deverias Frequentar Um Outro Mundo, Francisco Bosco

 Prólogo      Butch Cassidy e Sundence Kid estão em fuga pela mata. A polícia os persegue, com rastreadores, implacavelmente. Os dois fugitivos chegam a um precipício, de onde não podem voltar. Embaixo, muito embaixo, passa um rio. Os poiciais estão a caminho: eles vão chegar. É preciso o salto. Sundence diz: " eu não sei nadar". O abismo, enorme, o medo, a vertigem - só de olhar: Mas é preciso. A  polícia. Não tem volta. "Feche os olhos". Pulam. Lutar     É essa a cena, no amor, que antecede a ruptura e o luto. O pulo é o prólogo do luto. e se é preciso pular é porque não tem volta. A polícia está a caminho. Pode ser que ela nunca chegue, mas ela estará sempre a caminho ( é isso a angústia). pode-se não pular, alguns de fato não pulam nunca, e é possível que a polícia nunca chegue, mas estará sempre chegando. E todos somos como Sundence: não sabemos nadar. O precipício, a concentração das forças, o pulo. Só que ao invés do rio, cai-se em outras paisa...

Conto de Fadas, Florbela Espanca

Eu trago-te nas mãos o esquecimento Das horas más que tens vivido, Amor! E para as tuas chagas o unguento Com que sarei a minha própria dor. Os meus gestos são ondas de Sorrento... Trago no nome as letras de uma flor... Foi dos meus olhos garços que um pintor Tirou a luz para pintar o vento... Dou-te o que tenho: o astro que dormita, O manto dos crepúsculos da tarde, O sol que é d'oiro, a onda que palpita. Dou-te comigo o mundo que Deus fez! - Eu sou Aquela de quem tens saudade, A Princesa do conto: “Era uma vez...”

A Casa do Homem Verde, Marcos Cirano

É uma casa aonde hoje não chega ninguém. Onde só as formigas e algumas mariposas passeiam e voam por entre móveis antigos e velhos retratos de antepassados do atual e solitário morador do imóvel. Aliás, imóvel é o termo perfeito para definir aquela casa. Uma casa onde já não se ouvem músicas. Onde nenhuma risada interrompe o incômodo silêncio da solidão e onde nada, ou quase nada mais acontece. Uma casa onde um centenário relógio, na parede da sala, não marca mais as horas: deixou de funcionar faz exatos 23 anos e dois meses - mesmo tempo em que a última visita por ali andou e nunca mais voltaria. A casa é isolada, sim. Mas, não a ponto de ser um local de difícil acesso. Erguida numa pequena chácara, tem outras casas por perto, onde vive uma gente feliz e alegre. De modo que não é a casa que afasta as pessoas. A casa é a grande testemunha da amargurada vida do seu morador - único sobrevivente de uma família, digamos assim: não rica, mas uma família de algumas posses e que, outrora, ali...

Nairobi, Odjaki

     Quando se aproximou, a mulher trazia vestida no corpo a carga de uma notícia. Eu não quis acreditar. Pensei que (eu) estivesse a ler sinais inexistentes.      Mas é sabido: há sinais inconfundíveis. Há factos que nos encontram. No mar ou no deserto. Na escuridão ou na maresia.      Havia ruído. A mulher teve o cuidado de esperar que a multidão se dissipasse. Eu sabia que não esperava nada. E quando não espero nada, posso estar muito tempo assim. Ela esperava não sei o quê. Mas esperou.      É verdade que se aproximou devagar e que esteve um largo pedaço de tempo à espera que a multidão seguisse seu destino. Não deixa de ser curioso que duas pessoas sentadas no aeroporto, e paradas, podem fazer a vez de um polícia sinaleiro ou de uma esquina. Tanto um sinaleiro como uma esquina dão caminho a multidões.      "Se não é pesado o silêncio não incomoda", começou a mulher. Disse-o como quem fala para quem quis...

As Mídias Sociais Não Estão Nos Deixando Mais Solitários, Suzana Valença

  Dentre as várias preocupações que nós temos sobre o tempo que dedicamos à internet, a solidão é uma das mais tristes. No meio da noite, sem conseguir dormir, você pega o celular e começa a passar imagens no Instagram sem prestar muita atenção. Logo, você lembra de algum post sensacionalista que leu em algum lugar e começa a se perguntar se não é verdade:   “as redes sociais estão nos tornando mais solitários?” . Li bastante sobre isso ultimamente e tenho uma boa e uma má notícia. A boa notícia é que não, o Facebook e o Twitter não estão criando um sentimento de solidão. A má notícia é que o problema pode ser ainda mais grave. Em um capítulo sobre conexões virtuais no livro  The Friendship Cure , a jornalista  Kate Leaver  resume a questão: “Colocar toda a culpa na porta de Mark Zuckerberg porque ele inventou o Facebook em 2004 é simplista e inútil. Eu acredito que  nossa solidão é mais profunda do que a mídia social  e é causada por uma miríade de fa...

Clube Errante: 30 Dias Para Ler e 1 Noite Para Conversar

     Livro Errante, grupo de leitura começado no Orkut , funcionando muito bem até hoje pelo Facebook, precisou adaptar-se aos novos tempos.  Estamos aprendendo a ler em grupo com discussão virtual após a leitura.        O Clube Errante começou em abril, com o livro De Mary Shelley: Frankenstein que surpreendeu a todas as participantes. Em maio, discutimos Urupês de Monteiro Lobato. Ninguém no grupo conhecia a obra adulta do autor e Urupês foi uma surpresa. Agradou, desagradou, causou polêmica, deixou dúvidas e aplausos, curiosidade. Em junho  é a vez do livro Timbuktu , de Paul Auster: A amizade entre um vira-lata e um poeta semilouco: esta é uma história de amor sem cinismo ou ironia, e, para contá-la, Paul Auster compôs Timbuktu (1999), um misto de romance e fábula. Em inglês, Timbuktu (nome de uma cidade em Mali) designa um lugar tão distante que nunca se consegue chegar lá. Para Willy, o poeta maldito, o mendigo visionário, é o lug...

O Homem Atento, Marina Colasanti

            Por mais que recuasse com a memória, aquele homem não encontrava em sua vida um só momento em que não estivesse estado atento. Atento a tudo, plenamente, abertos os sentidos como se o seu corpo fosse a porta de entrada do mundo. Não dormia. Mal comia. Os olhos sempre despertos viam o que acontecia à sua frente, e pareciam ver com igual clareza o que acontecia atrás, ou mesmo longe deles. O nariz captava todos os cheiros, decifrava todos os perfumes. Os ouvidos distinguiam os componentes do silêncio tão bem quanto os da algazarra. Sentado numa almofada, assim prestava atenção, certo de que, enquanto tomasse conhecimento de tudo o que acontecia, estaria controlando a organização do mundo. Imóvel, sem permitir que qualquer distração viesse perturbá-lo, abrindo em sua vigilância uma brecha por onde pudesse entrar a desordem.

A Moça Tecelã, Marina Colasanti

      “Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.  Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente ...

Cadeiras de Aluguel, John Ashbery

Sabia-se muito pouco sobre qualquer coisa antigamente. Era como o que é um vocalise para uma sonata, as crianças à luz da ribalta e água correndo sobre pedras como se tivesse pressa para chegar a algum lugar. É possível fazer piada sobre isso agora que o período probatório já passou. Não admitir estar no papel errado.

Segunda-feira poética: Carta de Idalzira Para Joan

Minha casa era hospedagem Dos que moravam por fora Homem, criança e senhora Faziam camaradagem Todos fizeram viagem Em busca de outro torrão Deixando meu coração Cheio de saudades somente De uma casa cheia de gente Só resta um gato e um cancão. Foram embora meus cunhados Meus sobrinhos, meus amigos Foram enfrentar os perigos Que existe em outros estados Hoje estão espalhados Me dando recordação Vivo nesta solidão Velha, cansada e doente De uma casa cheia de gente Só resta um gato e um cancão. Fomos quatro irmãos unidos Todos morando por perto Porém Jesus achou certo Que ficássemos divididos Por isto fomos escolhidos Para esta separação A mana do coração Foi embora primeiramente De uma casa cheia de gente Só resta um gato e um cancão. Também um filho casado Minha nora carregou Meus netos também levou Ac...

Segunda-feira poética: Andar a Esmo, Sentir a Vida. José Antônio Pajeú

A esmo, caminhando pela Rua, Percorri, canto a outro, a Imensidão. O Imenso clarão da Bela Lua, Derramando Luz e Cores pelo chão. O cheiro denso da Brisa que flutua, A roçar no meu rosto em Efusão. O Barulho do Silêncio, eu só, a Rua, O Intenso desejo da Paixão. Tendo a vida, como Guia e Sentinela, A levar-me pelas vias da razão. A mostrar que a IMENSIDÃO é tão singela, E que ela, a vida, é tão, tão bela, Que vivê-la e sentir-se dentro dela, Nos faz ver, que é bela, até, a SOLIDÃO. Salve Jorge!

País Estrangeiro, Lêda Rivas

A vida que passa na rua é história que não vejo A palavra é código, mistério, sem solução, sem remédio A solidão dói na alma Que língua é essa que fala a multidão no meu tédio? Tua ausência faz de mim um país estrangeiro O medo de voar é maior do que a ânsia de tocar as estrelas A própria face se perde na imensidão dos espelhos Que mundo é esse que enxergo na escuridão do degredo? Que rumo é esse que traçam os seres extraterrenos? Que punhal o que me corta, dilacerando-me o peito? Que fogo é esse que arde e me consome por inteiro? Tua ausência faz de mim um país estrangeiro. (Recife, 20 de fevereiro de 1996) Nota: texto e imagem foram gentilmente cedidos por Lêda Rivas