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Mostrando postagens com o rótulo literatura contemporânea

O Enterro de Maria do Cricaré, Antonio Neto

A notícia da morte de Maria do Cricaré se espalhou como fogo no mato seco por toda a São Mateus . Quem não lhe devia um favor, uma bênção, o socorro na hora do parto, uma garrafada ou mesmo sua intervenção direta perante as autoridades? Fosse pobre ou fosse rico, todo cidadão ou cidadã mateense sabia quem era Maria do Cricaré e sabia respeitar a sua presença. Embora fosse muito pobre, parecia ser uma rainha africana. A majestade estava nos seus gestos, na sua voz e nas palavras que saíam da sua boca. Mesmo as famílias mais racistas da elite mateense tratavam aquela mulher singular com o devido respeito.  Agora, com a notícia de sua morte, a cidade estava paralisada. Parecia que o sol interrompera o seu trajeto no céu e que o vento já não soprava. E, temendo que o banzo tomasse conta da população, as autoridades procuraram apressar o enterro da anciã. Procuraram saber da família. Estavam todos espalhados pelo sul da Bahia, norte de Minas e pelos arredores de Vitória. Em São Mateus s...

O Embondeiro Que Sonhava Pássaros, Mia Couto

Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada. Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida.  Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro. Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas.  Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis. Dentro delas, os pássaros esvoavam suas cores repentinas.  À volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas: - Mãe, olha o homem dos passarinheiros! E os meninos inundavam as ruas.  As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças.  O homem puxava de uma muska (Muska - nome que, em chissena, se dá à gaita-de-beiços.) e harmonica...

E Assim Nós Seguimos...

 ...De Fio Jasmim quem nos trouxe as últimas notícias foi Eleonora Distinta de Sá, semelhante nossa, pertencente, mais tarde, à confraria de mulheres. Ela nos trouxe uma face encoberta de Fio Jasmim, que talvez nem ele mesmo soubesse ser possuidor. Distinta de Sá foi a única mulher que percebeu o esvaziamento que Fio trazia no peito. Ela compreendeu que nele morava também o desespero. Mas Fio Jasmim, ele próprio, como homeme, aprendera que o território macho era outro. Era uma região que se situava a mil milhas de diferença das terras das mulheres. E, como proprietário de uma extensa gleba, o homeme ali tinha o dever de dominar as mulheres, de alguma forma. E mais, tinha ainda de desafiar e causar inveja a outros machos. Não sendo de bom tom  o derramamento das dores do macho - assim pensava Fio Jasmim - por isso ele calou qualquer sintoma de mortificação em sua vida. Pouco importava a dolorida lembrança de ter sido preterido pelocoleguinha branco para representar um príncipe....

Coco do Pé de Manga, Jessier Quirino

As mangueiras tão de luto E as mangas de sentimento Derrubaram um pé de manga Pra fazer um apartamento. Um pé de manga Um pé de cupuaçu Um pé de jaca, um pé de coco E lindo pé de caju. Como é que pode Tamanho descabimento Derrubar um pé de manga Pra fazer um apartamento.   Um pé de manga Um pé de jaca e um pé de pinha De pitomba e graviola Daquela bem papudinha. Como é que pode Um cabra sem atributo Derrubar um pé de jaca Pra fazer um viaduto. As jacas de sentimento E as jaqueiras tão de luto Derrubaram um pé de jaca Pra fazer um viaduto. Um pé de jaca Um pezinho de romã Jambeiro, tamarinheiro Banana prata e maçã. Como é que pode Um cabra sem-vergonhento Derrubar um pé de jambo Pra fazer um apartamento.  Os jambeiros tão de luto E os jambos de sentimento Derrubaram um pé de jambo Pra fazer um apartamento. Um pé de jambo Um lindo pé de canela Sapoti, coisa mais bela E um pé de maracujá. É de lascar... Um pé de lima carregado Abacateiro florado Q'eu não posso nem lembrar. Letra ...

Recompensa, Sidónio Muralha

Voou por engano uma flor. Não sei se voou um ano, mas seja como for voou uma vez duas, três uma flor. Entrou na escola e descansou na sacola preta preta do menino branco que estava no banco e lhe chamou borboleta. E a borboleta para agradecer abriu a sacola e ajudou o menino a fazer os exercícios da escola. Em: Pé de Poesia, Global Editora, 2006, págs.58-59 Imagens: Cláudia Scatamacchia (com edição do blog)

O Que Estou Lendo: Oeste, Carys Davies

  CARYS DAVIES  nasceu no País de Gales e á autora de dois livros de contos. Oeste é seu primeiro romance. Vencedora dos prêmios Frank OÇonnor e Jewood Fiction Uncovered, ela também recebeu a bolsa da Biblioteca Pública de Nova York. Atualmente vive na Inglaterra. ( orelha do livro Oeste)      Ao mesclar uma saga familiar com a história americana, Carys Davies cria um retrato impactante e singelo do amadurecimento, da amizade e da busca por um sonho.    Por meio da história do fazendeiro Cy Bellman e de sua filha Bess, conhecemos não só o deslumbramento de um ser humano diante do desconhecido, mas também o desamparo de todos que se  encontram subitamente em um mundo hostil. Ao desenvolver a mais inusitada amizade com seu companheiro de viagem nativo americano, Bellman não sabe que está também cravando o próprio destino.      A jovem Bess tem apenas dez anos quando o pai parte em busca das gigantescas ossadas encontradas no interior...

Feijão Orgânico, Ladyce West

Tenho uma amiga dedicada à produção orgânica, com fazenda no interior do estado de São Paulo. Recebi dela um quilo de feijão carioca.  “É para colocar na geladeira. Não precisa deixar de molho de véspera, basta umas duas horas antes de cozinhar. Depois, cozinha em quinze minutos.” “Você não vai acreditar na delícia que é”, interveio, uma amiga em comum que faz ioga conosco. “Mas, olha,” disse a fazendeira, “tem que catar. Porque tudo é feito à mão e vem com pedrinhas, palha, alguns elementos da terra.” Mal sabia que esta demanda iria me causar meia hora de grande prazer, e um dia repleto de memórias. Há muitos anos não cato feijão.   Encontrar ciscos foi encontrar minha avó, depois meu pai e a infância degustatória. Sentadas, na sala de jantar, o jornal do dia anterior aberto sobre a mesa, uma pilha de feijão no canto cobrindo as manchetes antigas, uma tigela para cada uma, catávamos feijão para o almoço.   Minhas mãos pequeninas, de quatro a cinco anos, selec...

Tudo de Bom Vai Acontecer, Sefi Atta

De início eu acreditava em tudo o que me diziam sobre bom comportamento, até mesmo em mentiras deslavadas, embora tivesse meus próprios critérios. Em uma idade na qual as outras meninas nigerianas gostavam de brincar de ten-ten - brincadeira típica em que as crianças batem com os pés no chão em movimento ritmado e tentam vencer os adversários com joelhadas inesperadas -, minha distração favorita era ficar sentada no pequeno deque e fingir que estava pescando. Mas detestava quando minha mãe gritava da janela da cozinha, "Enitan, venha me ajudar aqui". Era obrigada a voltar correndo para casa.     Nós morávamos junto à lagoa de Lagos. Nossa propriedade tinha uma área de pouco mais de mil metros quadrados, limitada por uma cerca de madeira com farpas que machucavam os dedos. Eu brincava despreocupadamente só do lado oeste do quintal, pois o leste dava para mangue do parque Ikoui, onde já vi uma cobra-d'água. Os dias eram quentes, lembro-me bem, ensolarados e com pouca brisa....

O Bosque Chileno, Pablo Neruda

Flor de Copihue/ flor de la nacionalidad Ao pé dos vulcões, junto aos ventisqueiros, entre os grandes lagos, o fragrante, o silencioso, o emaranhado bosque chileno... Os pés  afundam na folhagem morta, um ramo quebradiço crepita, os gigantescos raulíes* levantam sua estrutura encrespada, um pássaro da selva fria atravessa o ar, esvoaça e se detém entre as ramagens sombrias - e logo, de seu esconderijo, soa como um oboé... o aroma selvagem do loureiro e o aroma obscuro do boldo me penetram pelas narinas até a alma... O cipreste das Guaitecas intercepta meus passos... É um mundo vertical: uma nação de pássaros, uma multidão de folhas... Tropeço em uma pedra, escarvo a cavidade descoberta e uma aranha imensa de pêlo vermelho me olha fixamente, imóvel, grande como um caranguejo... Um besouro dourado me lança sua emanação metífica enquanto desaparece coo relâmpago seu radiante arco-íris ... Ao passar, atravesso o bosque de fetos muito mais alto do que eu; caem no meu rosto sessenta lágr...

Partes, Marcelo Valença

A roupa cheira no varal Solta no ar um jasmim amarelo Resquício do aroma singelo Da tua nota essencial Deito-me de frente e de lado No lado bom da cama Aquele que, quando se ama Se deixa aquecido e reservado Salpico dois amores na parede De rubra intensa tinta Mas pode ser que eu minta Se de um amor tenho sede Não existe remédio genérico Nem receita milagrosa À tua presença afetuosa Nas frestas do meu ser hermético Crimes cometidos sem maldade Reviram-se culpa e desculpa Ao réu o castigo não se poupa: Paga seus delitos em saudade

A Minha Salamandra, Fernando Sabino

Certa vez, escrevendo uma novela, precisei saber se  uma salamandra tinha quatro ou seis pernas. Já não me lembro em que episódio novelesco pretendia envolver as pernas da minha salamandra, mas a verdade é que precisava saber “e não fiquei sabendo.      Que sei eu a respeito de minhas próprias pernas”, pensava então, deixando que elas me levassem para outros caminhos, fora da ficção.      Um ficcionista às vezes precisa saber coisas muito esquisitas. A experiência própria nem sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha infância nos galhos de uma mangueira, chupando manga o dia todo, e não soube responder a um meu amigo, excelente romancista, quanto tempo levava para germinar um caroço de manga.      Contou-me ele, na época, que andou precisando saber este pormenor, em razão de uma história que estava escrevendo. Depois de perguntar a um e outro, e não obtendo senão respostas vagas, telefonou para a repartição do Ministério da Agricultura ...

Pomba Enamorada ou Uma História de Amor, Lygia Fagundes Telles

      Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que vou amar ele pra sempre. Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou depressa as mãos molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os braços e o sorriso. Sorriso meio de lado, para esconder a falha do canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista do Rôni, o Doutor Élcio, isso se subisse de ajudante para cabeleireira. Ele disse apenas meia dúzia de palavras, tais como, Você é que devia ser a rainha porque a rainha é uma bela bosta, com o perdão da palavra.      Ao que ela respondeu que o namorado da rainha tinha comprado todos os votos, infelizmente não tinha namorado e mesmo que tivesse não ia adiantar nada porque só conseguia coisas a custo de muito sacrifício, era do signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar ...

Os Obedientes, Clarice Lispector

  Trata-se de uma situação simples, um fato a contar e esquecer.      Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que também nós nos arriscamos, já não se trata mais de um fato a contar, começam a faltar as palavras que não o trairiam. A essa altura, afundados demais, o fato deixou de ser um fato para se tornar apenas a sua difusa repercussão. Que, se for retardada demais, vem um dia explodir como nesta tarde de domingo, quando há semanas não chove e quando, como hoje, a beleza ressecada persiste embora em beleza. Diante da qual assumo uma gravidade como diante de um túmulo. A essa altura, por onde anda o fato inicial? ele se tornou esta tarde. Sem saber como lidar com ela, hesito em ser agressiva ou recolher-me um pouco ferida. O fato inicial está suspenso na poeira ensolarada deste domingo — até que me chamam ao telefone e num salto vou lamber grata a mão de q...

Existe Sempre Uma Coisa Ausente, Caio Fernando Abreu

       Paris — Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.      Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos á 20 anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no f...