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Mostrando postagens com o rótulo fantasia

O Quarto Anjo, conto de José Eduardo Agualusa

     Após criar o primeiro anjo, Deus ofereceu-lhe um poderoso par de asas. Explicou-lhe que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo. – Os pássaros – assegurou-lhe – voam por convicção. O anjo viu como voavam os pássaros, batendo as asas e recolhendo as pernas, e imitou-os.   Ao fim de cinco meses tinha ganho uma certa prática e até já conseguia fazer algumas piruetas, incluindo voo picado seguido de um duplo mortal invertido. Não era ainda uma águia, mas também não poderia ser confundido com uma galinha. Enfim, voava. – Agora tira-as. – Disse-lhe então Deus, que o observara, em silêncio, a uma distância discreta, durante todos aqueles dias. – Tira as asas e voa. O anjo olhou para Ele incrédulo. Protestou: – E eu lá sou doido, ó Deus?! Tiro porra nenhuma! Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem que o anjo falasse português, nem sequer o forte sotaque carioca. A língua e o sotaque, aprendera-as com Ele. Compreendeu, todavia, que lhe faltava ...

Os Buracos da Máscara, conto de Jean Lorrain

     “Você quer ver”, meu amigo De Jakels me dissera, “está bem, arranje uma fantasia de dominó e uma máscara, um dominó bem elegante de cetim preto, calce uns escarpins e, desta vez, meias de seda preta, e espere-me em casa na terça-feira. Irei pegá-lo por volta das dez e meia.”      Na terça-feira seguinte, envolto nas pregas farfalhantes de uma longa cama-lha, com a máscara de veludo e barba de cetim presa atrás das orelhas, esperei meu amigo De Jakels na minha garçonnière da rua Taitbout, enquanto esquentava nas brasas da lareira meus pés arrepiados pelo contato irritante da seda; lá de fora, chegavam- me do bulevar, confusamente, o som das cometas e os gritos desesperados de uma noite de Carnaval.      Pensando bem, era um tanto estranha e até inquietante, a longo prazo aquela festa solitária de um homem mascarado afundado numa poltrona, no claro-escuro de um térreo atulhado de bibelôs, ensurdecido por tapeçarias, e com espelhos pendurad...

Historinha de Páscoa, Maria Julieta Drummond de Andrade

 Até hoje Josefina não sabe explicar se foi sonho, fantasia ou realidade. No Domingo de Ramos, depoisde almoçar  bem, com vinho chileno e um licorzinho final, deitou-se na rede da varanda, disposta a abandonar-se ao dia luminoso. A cabeça, os pensamentos iam  e vinham, no mesmo ritmo lento e oscilante da rede; as preocupações foram esmaecendo, à medida que ela se deixava embalar.       Nisso houve um barulhinho que a princípio tentou ignorar, recendo romper a lânguida quietação que a envolvia. Mas o pequeno ruido - áspero, curto, insistente - acabou invadindo-lhe o bem estar. Abriu com relutância o olho preto ( o mais esperto) e logo depois o segundo,já totalmente emersa da modorra: diante dela um coelho malhado a encarava, com a orelha direita para cima e a esquerda encolhida. Seu jeito insolente e meio c6omico não a surpreendeu,pois tudo era possível sob aquela esplêndida luminosidade de abril. O visitante parou de arranhar o mosaico com as unhas, e ...

Eu, Orhan Pamuk

     Quando eu tinha quatro anos, meu irmão, na época com seis, entrou para a escola, e ao longo dos dois anos seguintes o companheirismo intenso e ambivalente que se desenvolvera entre nós começou a perder a força. Eu estava livre da nossa rivalidade e da opressão de sua força superior; agora que eu tinha o Edifício Pamuk e a atenção exclusiva da minha mãe o dia inteiro, tornei-me mais feliz e descobri as alegrias da solidão.      Enquanto o meu irmão ficava na escola, eu pegava suas revistas em quadrinhos de aventura e, guiado pela lembrança do que ele lera para mim, tornava a "lê-las", dessa vez sozinho. Numa tarde quente e agradável, eu tinha sido posto na cama para minha sesta diária mas, excitado demais para dormir, abri um número de Tom Mix e logo senti a coisa que minha mãe chamava de meu "bibi" ficando dura. Estava olhando para o desenho de um pele-vermelha seminu com um cordão finíssimo em torno da cintura e, cobrindo sua virilha como uma band...

Bibliotecas, Valter Hugo Mãe

As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos porque são lugares de partir e de  chegar.      Os livros  são parentes directos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio a ar, a ver o que existe para depois do que não se vê.      O leitor entra com o livro para para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.      Os livros são também toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam buracos na cabeça....

Meu Carnaval, Lima Barreto

     Mas fôste mesmo recrutado?      – Fui; e comi fogo que não foi graça.      – Como foi a história?      – Aproximava-se o carnaval. Como era meu costume, vim para a oficina, onde trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina, pelas bandas do Largo do Rio Comprido.      – Ao chegar à oficina, na Rua dos Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas d’água de um prédio novo.” Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua transversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do mais curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo comandante, um cabo, era um preto. E que preto engraçado! Desengonçado, pernas compridas e arqueadas, pés espalhados – era mesmo um macaco. A farda, blusa e calça, e...

Querido Homem Aranha, Mariana Salomão Carrara

      Querido Homem-aranha,  meu nome é Maria Carmem (Carmem com m) e eu não tenho superpoderes. Eu tenho um pouco de pena de você porque seu tio morreu por culpa sua e odeio quando uma coisa ruim é culpa minha, tipo quando meus pais não puderam ir na festa de ano novo porque eu tomei chuva e tive pneumonia. Acho que se um bicho fosse me morder pra eu virar super-heroína eu nunca ia escolher aranha. A aranha tem muitas pernas e é sozinha demais lá em cima na teia tanto tempo esperando alguém aparecer. E quando um inseto finalmente gruda ali, ela passa uns minutos olhando, imaginando como seria viver com ele. Daí ela mata o visitante. Uma vez numa viagem eu vi uma aranha comendo um vaga-lume que não parava de piscar. Ele já devia estar sem as asas e sem as perninhas e mesmo assim ficava acendendo no canto do teto. Achei a aranha tão cruel, espero que você mate os seus vilões muito mais depressa.       Será que o vaga-lume pisca de dor? Se eu pudes...

Modo de Amar, Valter Hugo Mãe

 Eu queria era ter um cão, mas a minha mãe diz que os cães fazem muito barulho a ladrar e que, por vezes, mordem. Diz também que se tivermos um cão durante muito tempo ficamos com a cara parecida com o seu focinho. A mim custa-me acreditar, mas é isso que a minha mãe me responde. Nem imagina  o quanto fico infeliz, parecido  a ter vazios por dentro.      Eu pedi:      - E se tivéssemos um gato? Um gato, nem que seja pequeno, para eu brincar.      E a minha mãe respondeu:      - Um gato nunca. Larga pêlo e afia as unhas nos cortinados.       Oh, mãe, um gato quase nem precisa de gente, vive sozinho com o seu nariz. E se fosse um peixe? Um coelho? E se fosse um crocodilo bebé?  - insisti eu.      E ela explicou:      - Os  peixes entristecem num aquário  e os coelhos trincam-te os dedos. Os crocodilos bebés crescem muito para serem crocodilos adultos...

Pedaços de Vida Jamais Desvendados, Ignácio de Loyola Brandão

     No final dos anos 1950, em Araraquara, Mister Pimenta, professor de inglês, teve um gesto generoso.  Toda terça-feira à noite, ele dava uma aula gratuita de reforço de inglês. Classe lotada. Por semanas, lá estive, por interesse na língua e em uma loirinha, a Gilda. O ritual da paquera, na época chamado flerte, era longo, exigia paciência. Em geral, começava no footing, com as mulheres caminhando na calçada entre os dois cinemas e os homens parados no meio-fio. Olha que olha, olha que olha, até que o olhar era correspondido. O footing acontecia aos sábados e domingos. Primeira semana, segunda, terceira, um encontro era marcado e aí dependia de você. As aulas de terça-feira acabavam funcionando como um dia a mais para nos favorecer. Uma noite, consegui descer a escada ao lado de Gilda. Emocionado, sabia que aquela era a chance. Conversamos um pouco, elas tinham horário para regressar à casa, 10 da noite. A certa altura, consegui encaixar a frase, “gostaria de nam...

Sonho, Ladyce West

Sapatilha de cetim  rosa, mágica. r Nos pés da menina, flutua. Passe para o sonho, bilhete para outra vida. Ela dança esvoaça na esperança. Borboleta-menina, trêmula no desejo, pousa no palco. Vacila, hesita, titubeia, enrijece e não cai, não perde a visão do futuro do objetivo final: voar. Apoiada em sonhos, levada pelo desejo, desafia a física e os deuses. Uma chama de rebeldia, um lampejo de independência firma-se na maciez do cetim rosa inquieta.  Em: À Meia Voz , Ladyce West Imagem: Owaldo Ibañez - Unsplash

O Lavador de Pedra, Manoel de Barros

 A gente morava no patrimônio de Pedra Lisa. Pedra Lisa era um arruado de 13 casas e o rio por detrás. Pelo arruado passavam comitivas de boiadeiros e muitos andarilhos. Meu avô botou uma Venda no arruado. Vendia toucinho, freios, arroz, rapadura e tais.  Os mantimentos que os boiadeiros compravam de passagem. Atrás da Venda estava o rio. E uma pedra que aflorava no meio do rio. Meu avô, de tardezinha,  ia lavar a pedra onde as garças pousavam e cacaravam. Na pedra não crescia musgo.  Porque o cuspe das garças tem um ácido que mata no nascedouro qualquer espécie de planta. Meu avô ganhou o desnome de Lavador de Pedra. Porque toda tarde ele ia lavar aquela pedra. A venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse abandonada. É que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. A venda por isso  ficou no abandono de morrer.  Pelo arruado só passavam agora os andarilhos. E os andarilhos paravam sempre para uma prosa com meu avô. E para ...

O Que Estou Lendo? Kafka e a Boneca Viajante, Jordi Sierra i Fabra

       Os passeios pelo parque Steglitz eram um bálsamo.      E as manhãs, tão doces...      Casais precoces, casais parados no tempo, casais que ainda não sabiam que eram casais, velhos e velhas com mãos cheias de histórias e rugas cheias de passado procurando cantos de sol, soldados com galas distinção, criadas de uniforme impecável,  babás com meninos e meninas vestidos com esmero, casais com filhos recém-nascidos, casais com  sonhos recém-destruídos, solteiros e solteiras de olhar esquivo, solteiros e solteiras de olhar insinuante, guardas, jardineiros, ambulantes...      O parque Steglitz transpirava vida naquele início de verão.       Um presente. ( Pág.13)  Kafka e a Boneca Viajante , Jordi Sierra e Fabra Ed.Martins Fontes,2006 Páginas 127.

Desafio Facebook: 7 Livros em 7 Dias (2)

Rolando novamente  a brincadeira de publicar durante 7 dias seguidos a capa de um livro que eu tenha amado. É só por a capa, sem explicações, críticas nem nada.  A cada postagem convida alguém pra entrar na brincadeira.     Participei 3 vezes e como terminei hoje minha última rodada, achei por bem trazer para cá os últimos 7 livros que eu amei.   Livro 2:  A Última Névoa, Maria Luisa Bombal " Não sabia que eu era tão branca e bonita. A água alonga minhas formas, que adquirem proporções irreais. Nunca me atrevi a olhar meus seios; agora os observo. Pequenos e redondos, parecem diminutas corolas suspensas sobre a água. Vou me afundando até os joelhos numa espessa areia de veludo. Mornas correntes acariciam-se e penetram-me. Como braços de seda, as plantas aquáticas enlaçam meu torso com suas longas raízes. Beija minha nuca e sobe até minha fronte o hálito fresco da água".( site da Liv. Travessa). Esse livro foi impactante: eu nunca tinha v...

Encanto, Marcelo Valença

     Umas duas noites atrás choveu. Ainda tem sereno no ar quando o sol começa a nascer e o barro da estrada ainda está razoavelmente assentado. Agora bem cedo seu Ulisses está com as vacas na beira da estrada e os três me parecem contentes. Quando passo ele me acena breve com a cabeça, deixando o sorriso suave durar um pouco mais.       Já a professora Irene me encontrou mais à frente no caminho da escola, como sempre. Ela sorria também e parecia que continuava o sorriso de seu Ulisses. Como se sorrissem no gerúndio.        -Tu pensou na pergunta do consultor?      Ela me perguntou assim bem devagar. E ainda ficou parada como um mandacaru para esperar resposta.      Ora, se pensei! Claro que pensei. Estou pensando ainda agora mesmo e já pensei tanto pensamento que você nem imagina. A Irene é bem intencionada, coitada. Gostou da conversa do consultor e quer sair fazendo da esco...