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Mostrando postagens com o rótulo Passado

O Que Estou Lendo? O Caminho Sem Aventura, Lêdo Ivo. Primeira página

     Durante o momento em que, tendo já apagado a luz, eu entrecerrava os olhos, aguardando um sono que  não vinha, era que me afluiam à memória todos os acontecimentos em que fôra jogado. Êsses fatos vinham em dsua maioria decepados, partidos, as imagens misturando-se à medida que o aniquilamnto do adormecer me tomava. Principalmente as lembranças da infância se transfiguravam, vestindo-se de tonalidades que eu sabia não serem reais, mas forjadas pela imaginação, surgindo dessa maneira como coisas criadas, afastando-se de suas linhas lúcidas para espalhar-se e desenvolver-se numa atmosfera de sonho. A imagem de Bárbara que flutuava em minha lembrança não era decerto a presença física de minha amiga, mas se tratava de Maria Eleonora, sua mãe, a pessoa que modificara, com sua influência e existência que eu levava, e se projetara de um modo considerával em minha vida.      Maria Eleonora era uma dessas criaturas que, mesmo desaparecidas, permanecem em no...

Profundamente, poema de Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Estrondos de bombas luzes de Bengala Vozes cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas. No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam E riam Ao pé das fogueiras acesas? Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente II Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? - Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. Em: Estrela da Vida Inteira págs.111-112 Imagem: Festa Junina, Djanira

O Apagão em Portugal E Espanha Teve Um Mérito Inesperado: Acendeu As Pessoas, texto de José Eduardo Agualusa

A longa interrupção de energia elétrica, que, na segunda-feira passada, atingiu a Península Ibérica, trouxe o caos e a inquietação para as grandes cidades — crianças presas em elevadores, escolas fechadas, dezenas de voos cancelados, boatos terríveis, e muita gente assustada, fazendo fila diante das mercearias de bairro para comprar água, vinho tinto, comida enlatada e papel higiênico.      Ao entardecer, porém, o ambiente distendeu-se. Em Lisboa, de onde escrevo esta coluna, vi vizinhos, que nunca antes se haviam cumprimentado, conversando uns com os outros, sentados na calçada. Vi desconhecidos partilhando velas e lanternas; outros oferecendo água e alimentos aos menos prevenidos.      Embora os semáforos tivessem deixado de funcionar não testemunhei nenhum sinal de nervosismo. Os motoristas respeitavam-se uns aos outros. Respeitavam até mesmo os pedestres, até mesmo os ciclistas, numa cortesia rara para os padrões locais. Cheguei a me sentir em Berlim. ...

Por Que Meus Amigos Mudaram Tanto? Crônica de Ruth Manus

     Cadê aquela galera toda que eu conhecia tão bem? Houve um tempo em que tudo parecia muito estável e muito seguro. Tudo e todos. Eles eram todo dia os mesmos e nós achávamos graça nas mesmas piadas, assistíamos os mesmos programas na TV, gostávamos das mesmas bandas. Nossos tímidos planos de viagens eram conjuntos, nossos planos para o fim de semana harmonizavam perfeitamente. Esse tempo passou.      Hoje em dia é um pouco estranho. O tipos de humor mudaram. Cada um assiste uma série diferente- somente game of thrones ainda é capaz de unir parte de nós. Alguns ouvem Liniker enquanto outros elevam o volume ao máximo berrando sobre o cake by the ocean. Uns fumam, outros não comem carne, outros só sabem se divertir com muito destilado, outros insistem em propor restaurantes que cobram R$150 por cabeça. A gente acaba ficando confuso.      Poderia dizer que hoje tenho um rol muito mais rico e diverso de amigos. Opiniões diferentes, programas d...

Retrato de Mulher Triste, Cecília Meireles

Vestiu-se para um baile que não há. Sentou-se com suas últimas jóias. E olha para o lado, imóvel. Está vendo os salões que se acabaram, embala-se em valsas que não dançou, levemente sorri para um homem. O homem que não existiu. Se alguém lhe disser que sonha, levantará com desdém o arco das sobrancelhas, Pois jamais se viveu com tanta plenitude. Mas para falar de sua vida tem de abaixar as quase infantis pestanas, e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas. Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)' Imagem: Bent Figure of a Woman 1882 - Van Gogh

O Vestido, Adélia Prado

No armário do meu quarto escondo do tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto. É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas. Eu o quis com paixão e o vesti como um rito meu vestido de amante. Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. É só tocá-lo, e volatiza-se a memória guardada: eu estou no cinema e deixo que segurem a minha mão. De tempo e traça meu vestido me guarda. Fonte: Escritas

Saudade, Mia Couto

                                                                      Que saudade tenho de nascer. Nostalgia de esperar por um nome como quem volta à casa que nunca ninguém habitou. Não precisas da vida, poeta. Assim falava a avó. Deus vive por nós, sentenciava. E regressava às orações. A casa voltava ao ventre do silêncio e dava vontade de nascer. Que saudade tenho de Deus. Em: O tradutor de chuvas Fonte: Centro Loyola Imagem: Regina Porto

A Casa do Homem Verde, Marcos Cirano

É uma casa aonde hoje não chega ninguém. Onde só as formigas e algumas mariposas passeiam e voam por entre móveis antigos e velhos retratos de antepassados do atual e solitário morador do imóvel. Aliás, imóvel é o termo perfeito para definir aquela casa. Uma casa onde já não se ouvem músicas. Onde nenhuma risada interrompe o incômodo silêncio da solidão e onde nada, ou quase nada mais acontece. Uma casa onde um centenário relógio, na parede da sala, não marca mais as horas: deixou de funcionar faz exatos 23 anos e dois meses - mesmo tempo em que a última visita por ali andou e nunca mais voltaria. A casa é isolada, sim. Mas, não a ponto de ser um local de difícil acesso. Erguida numa pequena chácara, tem outras casas por perto, onde vive uma gente feliz e alegre. De modo que não é a casa que afasta as pessoas. A casa é a grande testemunha da amargurada vida do seu morador - único sobrevivente de uma família, digamos assim: não rica, mas uma família de algumas posses e que, outrora, ali...

Confidência de Um Itabirano, Carlos Drummond de Andrade

Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil, este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! Imagem: sobrado onde C.D.A viveu até os 13 anos de idade.

Relógio, Tic Tac e O Tempo, Mário Quintana

Relógio O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família . Tic-Tac Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do Tempo a fabricar mortalhas. O Tempo A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são 6 horas: há tempo... Quando se vê, já é 6ª-feira... Quando se vê, passaram 60 anos! Agora, é tarde demais para ser reprovado... E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade, eu nem olhava o relógio seguia sempre em frente... E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Estrela Azul do Céu, Gilberto Gil ( Poemas da MPB)

Do céu do meu balão De antigamente Sumiu de repente Da noite de São João Azul do céu na noite só Papel de seda faz Balão era isso Magia, feitiço Milagre que não tem mais Papel de seda azul e vermelho e amarelo E verde a cintilar Translúcido vitral O balão se elevava, súbito pairava lá no ar Ser sobrenatural Aquela estrela azul do céu O tempo carregou O tempo não falha O tempo atrapalha O tempo não tem pudor A fila anda, a vida vai Propondo a mutação Então de repente Ficou diferente A noite de São João Álbum: Fé na festa , 2010

M.P.B Poesia, Alceu Valença

P da Paixão (LP Leque Moleque - 1987) O P da paixão Provoca o poema E o P do poema É um parto, é um parto São poucas pegadas Nas pedras do porto E um poema torto Persegue teus passos O P do passado Provoca o presente É o P do presente Que importa, que importa São poucas palavras Que batem no peito No fundo da alma Na porta da porta

Dribles do Passado, Regina Ruth Rincon Caires

A igreja era modesta, miúda, suficiente para abrigar os fiéis. Uma capelinha. O restante da praça, área imensa, servia a todos os moradores. Ali se juntavam, aproveitando o sol da manhã, colocavam a conversa em dia, faziam pequenos negócios, e, na parte da tarde, aquela terra batida, com pouca areia solta, pertencia aos moleques. As peladas aconteciam.  Todas as crianças da vila frequentavam a escola de manhã. Depois da aula, bastava o tempo de tirar uniforme, engolir o almoço, os pequenos iam brotando feito pipoca nas ruas, nas esquinas, num converseiro danado. O bando, adensado, discutia os times, reclamava da pegada do dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava um bom tempo até tudo se ajeitar. Todos descalços, as botinas só eram usadas na escola. Os times eram divididos em: de camisa, sem camisa. E eram camisas de botão. Não existiam camisetas para crianças, apenas os adultos as usavam sob as camisas. Cavadas. O espaço da trave, que geralmente era medido p...

Oração Ao Tempo, Caetano Veloso

És um senhor tão bonito Quanto a cara do meu filho Tempo, tempo, tempo, tempo Vou te fazer um pedido Tempo, tempo, tempo, tempo Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo, tempo, tempo, tempo Entro num acordo contigo Tempo, tempo, tempo, tempo Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo, tempo, tempo, tempo És um dos deuses mais lindos Tempo, tempo, tempo, tempo Que sejas ainda mais vivo No som do meu estribilho Tempo, tempo, tempo, tempo Ouve bem o que te digo Tempo, tempo, tempo, tempo Peço-te o prazer legítimo E o movimento preciso Tempo, tempo, tempo, tempo Quando o tempo for propício Tempo, tempo, tempo, tempo De modo que o meu espírito Ganhe um brilho definido Tempo, tempo, tempo, tempo E eu espalhe benefícios Tempo, tempo, tempo, tempo O que usaremos pra isso Fica guardado em sigilo Tempo, tempo, tempo, tempo Apenas contigo e comigo Tempo, tempo, tempo, tempo E quando eu tiver saído Para fora do teu círculo Tempo, tempo,...