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Mostrando postagens com o rótulo paixão

A Cantadeira, conto de Mia Couto

     Acabei a minha sessão de canto, estou triste, flor depois das pétalas. Reponho sobre meu corpo suado o vestido de que me tinha libertado. Canto sempre assim, despida. Os homens, se calhar, só me vêm ver por causa disso: sempre me dispo quando canto. Estranha-se? Eu pergunto: a gente não se despe para amar? Porque não ficar nua para outros amores? A canção é só isso: um amor que se consome em chama entre o instante da voz e a eternidade do silêncio.      Outros cantadores, quando atuam em público, se trajam de enfeites e reluzências. Mas, em meu caso, cantar é coisa tão maior que me entrego assim pequenitinha, destamanhada. Dessa maneira, menos que mínima, me torno sombra, desenhável segundo tonalidades da música.      Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida. Dizem mas, para mim, a voz serve-me para outras finalidades: cantando eu convoco um certo homem. Era um a...

Conto de Verão Número 2: Bandeira Branca, Luís Fernando Veríssimo

    Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo montinho de confete, serpentina poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.      Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egipcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.      Só no terceiro carnaval se falaram.      - Como é teu nome?      - Janice. E o teu?      - Píndaro...

Vasto Mundo, conto de Maria Valéria Rezende

     A moça chegou do Rio. Logo se vê... tão alvinha! Saiu daqui miúda, não diferenciava em nada das  outras meninas da escola minicipal. Foi o padrinho que a levou. Voltou essa moçona. Veio passar o São João. No meio das outras moças, na frente da igreja, ela agora diferencia até demais. O vestido bonito, mais altura, as unhas compridas e vermelhas, movendo os braços, dando voltas e requebros enquanto fala. E fala sem parar.  As outras mais matuts ainda unto dela, são apenas molduras para o quadro. Para os olhos de Preá, nem moldura. Não existem. Não existe mais a igreja, a praça, a vila, nada. Só a moça.      Preá outro nome não tem. Quem poderia dizer era a velha, mas morreu sem que ninguém se lembrasse de perguntar. Para a maioria do povo de Farinhada, hoje parece que ele sempre esteve ali, que sempre foi assim, uma coisa de vila como a igrea, a ponte sobre o riacho, os bancos de cimento da pracinha. Mas alguém se lembra;  chegou um dia c...

As Cores de Abril, Vinicius de Moraes

Os ares de anil O mundo se abriu em flor E pássaros mil Nas flores de abril Voando e fazendo amor O canto gentil De quem bem te viu Num pranto desolador Não chora, me ouviu? Que as cores de abril Não querem saber de dor Olha quanta beleza Tudo é pura visão E a natureza Transforma a vida em canção Sou eu, o poeta, quem diz Vai e canta, meu irmão Ser feliz é viver morto de paixão Ser feliz é viver morto de paixão As cores de abril Os ares de anil O mundo se abriu em flor E pássaros mil Nas flores de abril Voando e fazendo amor O canto gentil De quem bem te viu Num pranto desolador Não chora, me ouviu? Que as cores de abril Não querem saber de dor Olha quanta beleza Tudo é pura visão E a natureza Transforma a vida em canção Sou eu, o poeta, quem diz Vai e canta, meu irmão Ser feliz é viver morto de paixão Ser feliz é viver morto de paixão As cores de abril Os ares de anil O mundo se abriu em flor E pássaros mil Nas flores de abril Voando e fazendo amor O canto gentil De quem bem te viu Nu...

Conto de Fadas, Florbela Espanca

Eu trago-te nas mãos o esquecimento Das horas más que tens vivido, Amor! E para as tuas chagas o unguento Com que sarei a minha própria dor. Os meus gestos são ondas de Sorrento... Trago no nome as letras de uma flor... Foi dos meus olhos garços que um pintor Tirou a luz para pintar o vento... Dou-te o que tenho: o astro que dormita, O manto dos crepúsculos da tarde, O sol que é d'oiro, a onda que palpita. Dou-te comigo o mundo que Deus fez! - Eu sou Aquela de quem tens saudade, A Princesa do conto: “Era uma vez...”

M.P.B Poesia, Alceu Valença

P da Paixão (LP Leque Moleque - 1987) O P da paixão Provoca o poema E o P do poema É um parto, é um parto São poucas pegadas Nas pedras do porto E um poema torto Persegue teus passos O P do passado Provoca o presente É o P do presente Que importa, que importa São poucas palavras Que batem no peito No fundo da alma Na porta da porta

A Paixão da Sua Vida, Marina Colasanti

                                                                 Amava a morte. Mas não era correspondido.      Tomou veneno.  Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço.      Quando finalmente desistiu da paixão entregando-se à vida, a morte, enciumada, estourou-lhe o coração. Em: Um Espinho de Marfim e outras histórias Ed. LePM 1999

A Um Diamante Bruto, César Feitoza

Como decifrar-te? Diz! Como decifrar-te? És como a esfinge ou mesmo como a arte De Leonardo e sua Monalisa E és também como uma torrente De chuva fria ou de vento quente Que me atordoa e me faz demente E que me encharca e faz ranger meus dentes Que pra chegar, aviso não precisa. Como escalar-te? Diz! Como escalar-te? Como tocar teu cume invisível? Como transpor teu muro intransponível? Que cresce tanto mais agente escala Tantos pudores que me tiram a fala E me pergunto se não és de Marte. Como cavalgar-te? Diz! Como cavalgar-te? Como domar um coração ferido? O que fazer pra novamente dar-te A esperança que havias perdido? Como lapidar-te? Diz! Como lapidar-te? E um diamante bruto transformar E enxergar desejo em teu olhar Sem que tu penses que isso é pecado E não se importes se o alguém ao lado Censurará o fato de amar-te Como tocar-t...

Ela, Machado de Assis

Nana, Edouard Manet, Museu D'orsey Seus olhos que brilham tanto, Que prendem tão doce encanto, Que prendem um casto amor Onde com rara beleza, Se esmerou a natureza Com meiguice e com primor Suas faces purpurinas De rubras cores divinas De mago brilho e condão; Meigas faces que harmonia Inspira em doce poesia Ao meu terno coração! Sua boca meiga e breve, Onde um sorriso de leve Com doçura se desliza, Ornando purpúrea cor, Celestes lábios de amor Que com neve se harmoniza. Com sua boca mimosa Solta voz harmoniosa Que inspira ardente paixão, Dos lábios de Querubim Eu quisera ouvir um -sim- P’ra alívio do coração! Vem, ó anjo de candura, Fazer a dita, a ventura De minh’alma, sem vigor; Donzela, vem dar-lhe alento, “Dá-lhe um suspiro de amor!” Em: A alma e O utros Poemas, Machado de Assis - Ed. G lobo  Nota: este poema foi escrito em 1855, quando o autor tinha apenas 16 anos

A Vela de Sebo - Hans Christian Anderson

     Aquilo chiava e fervia enquanto o fogo dançava debaixo do caldeirão; era o berço da vela de sebo --e do interior do berço cálido surgiu a vela perfeita, elegante, brilhando branca e esguia. A julgar por seu aspecto, todos os que a contemplavam se convenciam de que ali estava a promessa de um futuro feliz e radioso --uma promessa que, como todos viam muito bem, ela não deixaria de cumprir.      A ovelha --uma linda ovelhinha-- era a mãe da vela, enquanto o caldeirão onde se derretia o sebo era seu pai. Da mãe ela herdara o admirável corpo branco e uma certa noção da vida; mas do pai recebera o desejo de ter uma chama ardente, capaz de penetrar medula e ossos --e de "brilhar" vida afora. Sim, essa era sua feição, assim ela se formara: entregara-se à vida impregnada das melhores e mais luminosas esperanças. E nela encontrara um número incrivelmente vasto de outras estranhas criaturas às quais se misturara, desejosa de aprender a...