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Mostrando postagens com o rótulo Conto brasileiro

Meu Nome É Carolina, conto de Natascha Duarte

      A festa junina da escola é um acontecimento esperado por todos, o ano inteiro. Cada membro da organização da festa recebe uma tarefa planejada e cumprida com rigor. Da parte alimentar, cuida dona Olinda, a merendeira que há 30 anos trabalha na escola; da música, o locutor da Prefeitura que nas horas vagas faz bicos como DJ; da coreografia, a professora de Artes, Isabela; e a João, o diretor, cabe punir exemplar mente os alunos do primeiro ao quinto ano que faltem aos ensaios da quadrilha. Aninha está já na sexta série. Para ela, portanto, é facultativo participar da dança. Para os menores, porém, a atração é uma sugestão imperiosa, senão a festa dei xa de existir. Ora, basta os que não a frequentam por razões religiosas se juntarem aos queixosos de plantão, aqueles que reclamam do preço, da hora, do dia, da indumentária, das músicas, etc., que a festa desaparece do mapa num estalo de traque. Com vontade de correr para adiantar o tempo, a menina chega à...

Tempo Morto, conto de Gilvan Lemos

     Um poço fundo, lama revolvida. Borbulhas de calda grossa, abulição de doce no ponto. Passos solitários na calçada, os pés de não se sabe quem recompondo sombras. Lamentos de criança em noite alta. Um velho fitando a torre da igreja. Não sei por que me vêm essas imagens. A secretária tinha dito: Mencionou apenas o nome, disse que o senhor sabia de quem se tratava. Pedi-lhe tempo: aviso quando puder recebê-la. Preparava-me? tomava fôlego?      Denise. Nossas casas confrontes na rua estreita, a dela assombrada. Da minha, através da vidraça, eu a via chegando à varanda, quando um ruído qualquer despertava-lhe a curiosidade, ou no vagar dum cigarro nostálgico. Por que nostálgico? Pela conotação do termo desusado ( por isso mesmo ingenuamente romântico), pela necessidade que eu lhe emprestava de superar-se do tédio, satisfazer-se do amor que eu lhe daria. Pensamos sempre que quem amamos é que precisa de nós.      Momentaneamente os carros pas...

Anotações Sobre Um Amor Urbano, conto de Caio Fernando Abreu

      Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei  dizer  mais nada, não tenho culpa, estou apenas sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só esta vontade quase simples de estender o braço para tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nesta janela, já dissemos tudo que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação impressão ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e, com a ponta dos meus dedos, tocar você, natural que seja assim: o toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora. Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha para mim, sorri. Quanto tempo dura? Faz pouco despencou uma estrela e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio, um pedido, dois pedidos. Pedi para saber tocá-lo. Você não me conta seus desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois daqui, poderá me d...

A Mulher Que Só Queria Comer Cores, texto de Ignácio Loyola Brandão

     Entre minha estada num apartamento no Pari e a ida para a alameda Itu, morei alguns dias numa pensão de estudantes na rua Arthur Prado, no Bexiga. Nas primeiras semanas de São Paulo, até mesmo pegar o bonde que descia a avenida Brigadeiro Luís Antônio e me deixava na praça das Bandeiras, próximo ao Teatro de Alumínio, era excitante, aventura. Tudo novo, descobertas. Mais tarde soube que até Olavo Setúbal, o megabanqueiro, usava na juventude o mesmo bonde para ir à Politécnica. O Bexiga já era bairro de casas senhoriais deterioradas pelo tempo, muitas delas transformadas em coriços, outra em pensões baratas, lojas de material de construção, de móveis usados, de tecidos também baratos.      A casa da Arthur Prado tinha uma atração. Pelas janelas, à noite, podia-se praticar o voyeurismo, porque na casa ao lado morava uma das mais belas estrelinhas do cinema brasileiro, a francesa Anik Malvil, que muitas vezes foi certinha do Stanislaw Ponte Preta.  ...

Um Apólogo, conto de Machado de Assis

      Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: – Por que está você com esse ar, toda  cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?        – Deixe-me, senhora.       – Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.       – Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.       – Mas você é orgulhosa. – Decerto que sou.       – Mas por quê?       – É boa! Porque coso2 . Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?      – Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?      ...

O Mapa, José Condé

Vejo-me debruçado numa janela da Rua da Aurora, enquanto a noite baixava sobre o rio e a ponte. Contra a luz morrente os sobrados pareciam mais esguios, a sombra arroxeada se projetando imprecisa nas águas escuras do Capibaribe. Lembro-me bem: embora o céu prometese chuva, o ar vibrava sob o calor. De vez em quando, a aragem fresca trazia cheiros estranhos: óleo, maresia e peixe frito; mas também de cajueiros e jaqueiras distantes, da alvarenga abarrotada de abacaxis que estaria navegando na direção do Cais de Santa Rita. A aragem, entretanto, não me acalmava. “Vai ser um estirão de enlouquecer.” As palavras de Albérico iam e vinham, confusas, dentro de mim. Ah, se tivesse sido apenas isso! A lembrança do mapa azul largado em cima da mesa me levava a um pequeno ponto preto – impreciso e quase desnecessário – que seria meu destino: o Poti. Ficava à margem de uma linha grossa e sinuosa, em vermelho, cortando a gravura como uma cobra: o São Francisco. ...

Olhos d'água, Conceição Evaristo

     Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado até ali. E a insistente pergunta, martelando, martelando... De que cor eram os olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe? Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer...

Colheita, Nélida Piñon

     Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades submersas em lava. A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o s...

A Outra Perna do Saci, Menotti Del Picchia

      Tião pensou no Saci.      -Foi o mardiço que trouxe lagarta rosada no algodoal...      Baixou uma tarde de ópera lírica. Os grilos desceram a policiar a várzea. Trii...Trii.. Os acendedores de gás iluminavam a ferraria dos sapos que davam as últimas marteladas no disco da lua, uma espécie de balão metálico que iam soltar em cima do açude.      - Mais eu laço êle, - matutou o Tião.      Procurou o rancho. As árvores recuavam para dar passagem ao caminho.      Ficavam na ponta dos pés das raízes. Viu uma quaresmeira vir vindo rampa acima rumo da estrada curva sob seu fardo de flôres. Era um floricultor carregando nas costas tôda a primavera.      - Laço êle e fica meu escravo. É só jogá o têrço no rodamoinho e carrego êle prá casa. Êle vai ajudá no eito...      Alcançou uns eucaliptos crianças que aprendiam a ser árvores no colégio de um hôrto florestal.   ...