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Mostrando postagens com o rótulo conto lusitano

O Menino de Água, conto de Valter Hugo Mãe

O menino nadou para depois de uma onda grande e não voltou. A mãe estendeu as mãos na água buscando o seu corpo diluído. Julgava ela que o filho se diluíra como um cubo de açúcar incapaz de adocicar o mar. Jurou que o buscaria sempre. Haveria de o reconhecer nem que ele se tornasse ínfimo. Saberia dele escondido na mais insignificante gota de água. Jurava. Se o seu menino estivesse por ali, ela nunca o ignoraria.      Nadou ao fim do mar, à boca dos tubarões, dentro do vazia das baleias, sob as barrigas cegas dos barcos, no pensamento dos peixes e nas suas costas, entre as areias,  atrás das pedras e debaixo.  Buscou na cintilação quando a liuz entrava água adentro fazendo de tudo um cristal gigante, podia ser que o filho fosse agora uma estrela e só soubesse brilhar. A mãe olhava o brilho como se o brilho a tivesse também a observar. Esperava e, de todo modo, ficaria para sempre a esperar.      Nunca secava o corpo porque a água era agora o seu m...

O Pastor Gabriel, Miguel Torga.

     Nunca houve em toda a montanha pastor como Gabriel.      - Merecia outras olvelhas, homem! - disse-lhe um dia o Prior, desanimado da anarquia dos seus paroquiamos, quando viu o rebanho do rapaz atravessar a estrema dum centeio sem tirar uma dentada.      - Deus me livre! Já me vejo maluco com estas...      Mentira. O padre tinha razão.Era uma pena ver tanta autoridade, tanta vocação, tanto jeito natural, ao serviço de animais. Nem se pode fazer ideia! O carneiro mais teimoso, mais lorpa, mais churro, chegava às mãos do Gabriel e mudava de condição. Só não ficava a falar.      -Que fazes tu ao gado, criatura? Parece que o enfeitiças!      - Nada. Dou-lhe monte, como a outra gente.      Sorria. E lá continuava a educar os malatos com gestos e palavras que ninguém sabia fazer nem dizer. Nunca batia numa rês. O castigo era um simples olhar reprovativo, um assobio impaciente, uma in...

O Rapaz Que Habitava Os Livros, Valter Hugo Mãe

Barafustaram comigo, nem escutaram o que eu queria que entendessem. Diziam que os livros queimavam os olhos, eram diurnos, não serviam para  as noites. As regras do nosso colégio interno, para meninos casmurros  como eu,  mandavam assim.  Queriam os livros no corredor. As luzes apagadas às nove. Eu ainda deitei mão a alguns volumes, toquei-lhes brevemente igual a quem cai num precipício e procura agarrar-se, mas não me deixaram nada. Apenas o candeeiro já apagado, como se a luz tivesse morrido de tristeza. Adormeci muito mais tarde, de todo o modo. O coração rasgado em papelinhos pequenos. E uma gula esquisita embrulhada no estômago parecia dizer que eu não havia jantado. Fui ver a minha nova estante logo pela manhã. Era um bocado de espaço arranjado entre tralhas meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam i...

Bibliotecas, Valter Hugo Mãe

As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos porque são lugares de partir e de  chegar.      Os livros  são parentes directos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio a ar, a ver o que existe para depois do que não se vê.      O leitor entra com o livro para para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.      Os livros são também toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam buracos na cabeça....

Quarta-feira é dia de conto: Lixo lixado, Mia Couto

Lixo, Lixado Mia Couto Orolando Mapanga não tinha onde cair vivo? É a impura verdade. Dele se fica sabendo que não existe pobreza de espírito. O que há é miséria sem espírito. O caso sendo universátil merece as tantas linhas. Pois o que importa não é o acontecimento mas a gente que há no não.acontecer da vida. Lugar de viver de Orolando era na lixeira, lá no interior, primeira transversal, à direita. Com boas vistas para o mar, mesmo na vertente de um monte de desperdicio. Apanhando boa brisa, mau grado os péssimos odores. Ali ele despachava os seus afazeres. Ao fim da tarde, saía a procurar restos de comida, gordurazinhas, singelas putrefacções. Raspava o fundo das latas, auscultava o ventre dos sacos. Ao ler seu constante sorriso, dir-se-ia que a felicidade é coisa encontrável mesmo na imundície. Orolando bem que defendia as vantagens do lugar: - Aqui não chega nenhum bandido. Lugar seguro de viver, isso ele garantia. Sossegado, também. Só no fim da madrugada o si...