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Mostrando postagens com o rótulo ciúme

Metonímia, Ou A Vingança do Enganado, Rachel de Queiroz ( Março: mês da mulheres)

 (Drama em três quadros)  Quadro I      Metonímia - a palavra me ficou na memória desde o ano de 1930, quando publiquei o meu livro de estréia, aquele romance chamado O Quinze. Um crítico, examinando a obrinha, censurava-me porque, em certo trecho da história, eu falava que o galã saíra a andar "com o peito entreaberto na blusa". "Que disparate é esse?", indagava o sensato homem. "Deve-se dizer é: blusa entreaberta no peito". Aceitei a correção com humildade e acanhamento, mas aí o meu ilustre professor de latim, Dr. Matos Peixoto, acudiu em meu consolo. Que estava direito como eu escrevera;que na minha frase eu utilizara uma figura retórica, a chamada metonímia - tropo que consiste em trasladar-se a palavra do seu sentido natural da causa pelo efeito, ou do continente para o conteúdo. E citava o exemplo clássico: "taça espumante" continente pelo conteúdo, pois não é a taça que espuma e sim o vinho. Assim sendo, "peito entreaberto"estav...

Os Faroleiros, conto de Monteiro Lobato

       – Navio?      Dava azo à dúvida uma luz vermelha a piscar na escuridão da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é o breu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. De cego de nascença, vá.       Céu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique além da pinta vermelha que, súbito, se fez amarela.       – Lá mudou de cor. E farol.       E, como era farol, a conversa recaiu sobre faróis.       Eduardo interpelou-me de chofre sobre a ideia que eu deles fazia.      – A ideia de toda a gente, ora essa! – Quer dizer, uma ideia falsa. "Toda a gente" é um monstro com orelhas de asno e miolos de macaco, incapaz duma ideia sensata sobre o que quer que seja. Tens na cabeça, respeito a farol, uma ideia de rua recebida do vulgo e nunca recurihada na matriz das impressões pessoais. Erro.       – Confesso-me capaz de abrir a boca a um auditório de casaca...

Nós Três, Paulo Maldonado

     Dirijo de volta, Sílvio emborcado ao meu lado. Passa da meia-noite. Deixamos Pedro no Flamengo e atravessamos Botafogo, em direção à Barra.     Nossos encontros servem de refresco para as aporrinhações do trabalho, mulher e filhos. São a confirmação de nossa amizade, valor maior que cultuamos nesse tempo de puro egoísmo e solidão. As regras foram se estabelecendo naturalmente: só a pedido falamos de assuntos pessoais e de família; evitamos o mau humor e a depressão e só faltamos em casos graves. Discutimos futebol, política, mulheres, assuntos da semana, contamos piadas, falamos mal de conhecidos, fazemos todas as gozações permitidas pela intimidade. Mas, principalmente, enchemos a cara.       Pedro, antes de saltar no Flamengo, reclamou muito, contando que está de saco cheio da mulher, fica acordada esperando ele chegar, cheia de ciúmes, diz que somos viados, tem muita chiação, choro e há semanas ele está dormindo na...

O Caso do Espelho, Ricardo Azevedo

Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata. Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos.  Depois gritou, com o espelho nas mãos: - Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui? - Isso é um espelho - explicou o dono da loja. - Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai. Os olhos do homem ficaram molhados. - O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante. O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira. - É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito? O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho Naquele dia, o homem que não sabia quase ...

Conhecendo novos autores: Manuel Alegre.

Minha mãe teve sempre para mim grandes desígnios. Quais eles fossem não sei. Nem ela própria o saberia. Era uma força que vinha de dentro dela, uma obstinação. Ela queria  grandes coisas para mim, um destino, talvez um milagre. Transmitiu-me desde pequeno essa crença em algo de superior que me esperava ou que eu devia cumprir. Talvez por isso vivi sempre uma tensão extrema, creio que muitas vezes à beira da ruptura. Por vezes desorganizava-se, adoecia. Ela não descansava: estava sempre interiormente orientada para um fim. E nunca satisfeita.  Nem consigo nem com os outros. Não sei ao certo o que ela exigia. Nem talvez ela própria soubesse. Sei que me incitava. Era uma fé que quase me obrigava a corresponder, sob pena de eu próprio me considerar um fraco. Não que me estimulasse a ser o melhor, nem sequer a competir. O que ela queria é que eu fosse diferente: o outro, o único. Por ser seu filho . O seu. Sublinhado. Por isso tinha que deixar na vida um sinal, um marco, ...