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Mostrando postagens com o rótulo segunda-feira

Quadros, Marin Sorescu - tradução: Luciano Maia

Todos os museus têm medo de mim porque cada vez que fico um dia inteiro em frente de um quadro, no dia seguinte se anuncia o seu desaparecimento. Todas as noites sou flagrado roubando em outra parte do mundo, mas eu não me importo com as balas que silvam perto dos meus ouvidos e com os cães-lobos que conhecem agora o cheiro dos meus rastros melhor que os namorados o perfume da amada. Falo alto com as telas que põem em perigo a minha vida penduro-as nas nuvens e nas árvores e recuo para ter perspectiva. Com os mestres italianos pode-se ter facilmente uma conversa. Que algazarra de cores! Também por esse motivo com eles sou flagrado rapidamente visto e ouvido à distância como se levasse papagaios nos braços. O mais difícil é roubar Rembrandt: estendes a mão e encontras a escuridão – Ficas horrorizado, os seus homens não têm corpos apenas têm olhos fechados em caves escuras. As telas de Van Gogh são doidas giram e dão cambalhotas e tenho de segurá-las bem ...

Ser Levado, Vitorino Nemésio

Tivesse eu sido o que não fui, Hoje era o mesmo projectado António, Pedro, Lopo, Rui, Quatro semblantes num só estado.

Cântico Negro, José Régio

Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho do...

Saudação Aos Que Vão Ficar, Millor Fernandes

Como será o Brasil no ano dois mil? As crianças de hoje, já velhinhas então, lembrarão com saudade deste antigo país, desta velha cidade? Que emoção, que saudade, terá a juventude, acabada a gravidade? Respeitarão os papais cheios de mocidade? Que diferença haverá entre o avô e o neto? Que novas relações e enganos inventarão entre si os seres desumanos?

Ofensa, Tudor Arghezi

Desdenhei do granito, ó companheira, Do qual te poderia ter moldado. Busquei na argila do país amado Teu corpo esbelto e com odor de cera. Recolhi terra em bosques ancestrais E amassei-a com minha mão de oleiro Em partes, cada membro por inteiro Teu ser pequeno, em sílex fugaz. Esmaltei os teus olhos de verbena E os cílios foram folhas de roseira. As sobrancelhas, ramos em fileira De erva recente, de uma luz amena. O teu dorso dos cântaros formei E se em teus seios tenho demorado Com mão acesa, sinto-me culpado Se na cintura a estátua não findei.

Poema de Fim da Feira, Alceu Valença

Imagem do site Kleber Leite A noite rendendo a tarde, Toda Sexta é mesmo assim, Depois do sol em declínio, A feira chegando ao fim. Um bêbado declama um verso Na frente de um botequim: É o resto, É a sobra É o sobejo, É a casca É a banana É a calçada, Melancólicas Melancias Mordiscadas. É a feira Que agoniza Triturada Bebida Sorvida, Deglutida, Mastigada, Ela vive E agoniza Em becos, Praças, Calçadas. De manhã, Chegou gorda E bem faceira. Pouco a pouco Foi perdendo O movimento. virou resto, Monturo, Bagaceira. Peleja da vida Com o bicho do tempo. In O Poeta da Madrugada, Alceu Valença.

Entre Marília e a Pátria, Frei Caneca

  Entre Marília e a pátria Coloquei meu coração: A pátria roubou-m'o todo; Marília que chore em vão. Quem passa a vida que eu passo, Não deve a morte temer; Com a morte não se assusta Quem está sempre a morrer. A medonha catadura Da morte feia e cruel, Do rosto só muda a cor Da pátria ao filho infiel.

Cadeiras de Aluguel, John Ashbery

Sabia-se muito pouco sobre qualquer coisa antigamente. Era como o que é um vocalise para uma sonata, as crianças à luz da ribalta e água correndo sobre pedras como se tivesse pressa para chegar a algum lugar. É possível fazer piada sobre isso agora que o período probatório já passou. Não admitir estar no papel errado.

For We Who Keep Our Lives In Our Mouths, Nayyirah Waheed

my whole life i have ate my tongue ate my tongue ate my tongue

Tristeza da Lua, Charles Baudelaire

Divaga em meio à noite a lua preguiçosa;   Como uma bela, entre coxins e devaneios, Que afaga com a mão discreta e vaporosa, Antes de adormecer, o contorno dos seios. No dorso de cetim das tenras avalanchas, Morrendo, ela se entrega a longos estertores, E os olhos vai pousando sobre as níveas manchas Que no azul desabrocham como estranhas flores.

Oração do Milho, Cora Coralina

Senhor, nada valho. Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres. Meu grão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. Ponho folhas e haste, e, se me ajudardes, Senhor, mesmo planta de acaso, solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou. Sou a planta primária da lavoura. Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo, de mim não se faz o pão alvo universal. O justo não me consagrou Pão de Vida nem lugar me foi dado nos altares. Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, alimento de rústicos e animais de jugo.

O Mal e o Sofrimento, Leandro Gomes de Barros

Se eu conversasse com Deus Iria lhe perguntar: Por que é que sofremos tanto Quando viemos pra cá? Que dívida é essa Que a gente tem que morrer pra pagar? Perguntaria também Como é que ele é feito Que não dorme, que não come E assim vive satisfeito. Por que foi que ele não fez A gente do mesmo jeito? Por que existem uns felizes E outros que sofrem tanto? Nascemos do mesmo jeito, Moramos no mesmo canto. Quem foi temperar o choro E acabou salgando o pranto?” Leandro Gomes de Barros :  poeta paraibano cuja obra foi usada por Ariano Suassuna em, por exemplo, O Auto d Compadecida. Leia sobre ele clicando aqui Imagem e mais informações sobre o autor, clique aqui  

Nayyirah Waheed: A Americana do Momento no Instagram (1)

     Nayyirah, é uma jovem e reclusa americana que escreve boas poesias e é muito conhecida no Instagram.  Nayyirah Waheed fala muito e bem do que todos nós devemos ouvir: racismo, autoestima, feminismo.      Como acabei de me encantar por ela, vou dedicar algumas segundas-feiras poéticas a Nayyirah Waheed. Nota: A escritora tem dois livros: Salt e Nejma, ambos sem edição em português.  Fonte: Jornal Nexo.

Oração Ao Tempo, Caetano Veloso

És um senhor tão bonito Quanto a cara do meu filho Tempo, tempo, tempo, tempo Vou te fazer um pedido Tempo, tempo, tempo, tempo Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo, tempo, tempo, tempo Entro num acordo contigo Tempo, tempo, tempo, tempo Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo, tempo, tempo, tempo És um dos deuses mais lindos Tempo, tempo, tempo, tempo Que sejas ainda mais vivo No som do meu estribilho Tempo, tempo, tempo, tempo Ouve bem o que te digo Tempo, tempo, tempo, tempo Peço-te o prazer legítimo E o movimento preciso Tempo, tempo, tempo, tempo Quando o tempo for propício Tempo, tempo, tempo, tempo De modo que o meu espírito Ganhe um brilho definido Tempo, tempo, tempo, tempo E eu espalhe benefícios Tempo, tempo, tempo, tempo O que usaremos pra isso Fica guardado em sigilo Tempo, tempo, tempo, tempo Apenas contigo e comigo Tempo, tempo, tempo, tempo E quando eu tiver saído Para fora do teu círculo Tempo, tempo,...

Mea Culpa, Antero de Quental

Não duvido que o mundo no seu eixo Gire suspenso e volva em harmonia; Que o homem suba e vá da noite ao dia, E o homem vá subindo insecto o seixo. Não chamo a Deus tirano, nem me queixo, Nem chamo ao céu da vida noite fria; Não chamo à existência hora sombria; Acaso, à ordem; nem à lei desleixo. A Natureza é minha mãe ainda… É minha mãe… Ah, se eu à face linda

A Cidade, Tahar Ben Jelloun

Rabat- Marrocos Não é suficiente um amontoado de casas para fazer uma cidade É preciso rostos e cerejas Andorinhas azuis e dançarinas delicadas Uma tela e imagens que contem histórias Como ruína apenas um céu mastigado por nuvens Uma avenida e águias pintadas sobre as árvores Pedras e estátuas que dissipem a luz E um circo que perde seus músicos Joalheiros retêm a primavera em suas mãos de cristal Sobre o solo pegadas de um tempo sem crueldade Uma camada e sílabas depositadas pelo suco de uma romã É o sol que se entedia e homens que bebem Uma cidade é um enigma iludido pelos espelhos Jardins de papel e fontes de água sem alma Somente as mulheres românticas o sabem Elas se vestem de luz e de sonho Metálica e altiva A cidade sacode a memória E dela caem livros e sarcasmos, rumores e risos E nós a atravessamos como se fôssemos eternos. Paris, 11 de novembro de 2005 - Tradução: Pedro Braga Fonte: Associação Nacional dos Escritores  Imagem: cidades em fotos...

Aos Namorados do Brasil, Carlos Drummond de Andrade

Dai-me, Senhor, assistência técnica para eu falar aos namorados do Brasil. Será que namorado algum escuta alguém? Adianta falar a namorados? E será que tenho coisas a dizer-lhes que eles não saibam, eles que transformam a sabedoria universal em divino esquecimento? Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa, quando perdem os olhos para toda paisagem , perdem os ouvidos para toda melodia e só vêem, só escutam melodia e paisagem de sua própria fabricação? Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados enquanto namorados. Antes, depois são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia. Mas quem foi namorado sabe que outra vez voltará à sublime invalidez que é signo de perfeição interior. Namorado é o ser fora do tempo, fora de obrigação e CPF, ISS, IFP, PASEP,INPS. Os códigos, desarmados, retrocedem de sua porta, as multas envergonham-se de alvejá-lo, as guerras, os tratados internacionais encolhem o rabo diante dele, em volta dele. O tempo, afiando sem pausa a sua foice, e...

Segunda-feira poética: Carta de Idalzira Para Joan

Minha casa era hospedagem Dos que moravam por fora Homem, criança e senhora Faziam camaradagem Todos fizeram viagem Em busca de outro torrão Deixando meu coração Cheio de saudades somente De uma casa cheia de gente Só resta um gato e um cancão. Foram embora meus cunhados Meus sobrinhos, meus amigos Foram enfrentar os perigos Que existe em outros estados Hoje estão espalhados Me dando recordação Vivo nesta solidão Velha, cansada e doente De uma casa cheia de gente Só resta um gato e um cancão. Fomos quatro irmãos unidos Todos morando por perto Porém Jesus achou certo Que ficássemos divididos Por isto fomos escolhidos Para esta separação A mana do coração Foi embora primeiramente De uma casa cheia de gente Só resta um gato e um cancão. Também um filho casado Minha nora carregou Meus netos também levou Ac...

Segunda-feira poetica: Seis Quadrinhas Avulsas, Fraga

I Poeminha quando nasce esparrama pelo autor Menininha quando dorme acorda Morfeu pro amor. II "Amai-vos uns aos outros" é meu mandamento lapidar Mas aviso aos seguidores: só nas lápides é bom usar.  III Quem dá provas de caráter caráter não tem pra vencer. Mas se vender essas provas caráter de ricaço vai ter IV Sou amante da Boa Vida, da Natureza e da Santa Paz. As três sempre me dizem que como eu não fazem mais. V Pelo que conseguimos ver, o futuro será um talo pois castigo e presidente vieram num mesmo cavalo. VI Ah, senhores sérios e sisudos que se fecham para balanço: por que não imitam os poetas, que se abrem para o descanso? In: Punidos Venceremos, pag.29, Ed.Codecri, Rio de Janeiro 1981

Estampas Eucalol, Hélio Contreiras

Montado no meu cavalo Libertava prometeu Toureava o minotauro Era amigo de Teseu Viajava o mundo inteiro Nas estampas Eucalol A sombra de um abacateiro Ícaro fugia do sol. Subia o monte Olimpo Ribanceira lá do quintal Mergulhava até netuno No oceano abissal São Jorge ia pra lua Lutar contra o dragão São Jorge quase morria Mas eu lhe dava a mão E voltava trazendo a moça Com quem ia me casar Era minha professora Que roubei do Rei Lear. Add a playlist TamanhoAA Cifra Impri Corrigir