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Mostrando postagens com o rótulo Antonio Neto

Por Que Não Te Amaram, Francisco? crônica de Antonio Neto

O outono capixaba alterna dias ensolarados com outros nublados, atravessados por dias chuvosos, desfazendo um pouco do eterno verão que nos é peculiar. Nesses últimos dias, o mar tem nos trazido ventos tristes... Francisco é morto. Isso faz lembrar o trecho da música de Fernando Brant, Lô Borges e Márcio Borges; eternizada na voz de Milton Nascimento: “Por que você não verá Meu lado ocidental? Não precisa medo, não Não precisa da timidez Todo dia é dia de viver Eu sou da América do Sul Sei, vocês não vão saber” Jorge Mario Bergoglio nasceu em Buenos Aires, em 17 de dezembro de 1936, filho de imigrantes italianos. Quando eleito Papa, ele disse: “Parece que meus irmãos cardeais foram me buscar no fim do mundo”. Ele se declarava, assim, um homem do Sul Global. Proveniente dos países colonizados pelas nações europeias por cerca de 300 anos. Nós, a periferia do mundo. Nós somos o Extremo Ocidente, como cantou Caetano Veloso, na música Milagres do Povo: “Foi o negro que viu a crueldade bem...

O Que Você Tem A Ver Com Jojo Todynho? crônica de Antonio Neto

Jordana Gleise de Jesus Menezes. Obesa, baixinha (1,48m), preta retinta, carioca, periférica, seria o perfil de alguém para quem a mídia jamais daria bola, vez ou voz. Apareceu para o grande público com o hit “Que tiro foi esse?”. A música foi a janela que se abriu. Janela esta que Jojo Todynho soube aproveitar. De ex-vendedora ambulante, que corria do rapa da prefeitura, ela se viu na tela da tv, nos programas de maior audiência. Badalada e ao lado de famosos, foi escalada para participar de um reality show. Mas, o que você tem a ver com Jojo Todynho? Nada. E tudo... Visto que Jordana Gleise sintetiza, de certa forma, a polarização político-religiosa-cultural por qual passa o Brasil. Estamos como uma sucuri que está na troca de couro. E estamos na carne viva! Quem não conhece uma mulher preta, simpática, despachada, desbocada, bem-humorada, que não leva desaforo para casa? Pode ser uma babá, cozinheira, diarista, professora, enfermeira, empresária, advogada; elas estão por aí, cha...

O Lobo, a Raposa e o Cordeirinho, conto de Antonio Neto

                                                                                               It's a heartache Nothing but a heartache Era 1982, meus pais resolveram abrir um bar para driblar o desemprego e a crise econômica que devastavam as periferias da Grande São Paulo. Em pouco tempo, muitas pessoas desconhecidas começaram a fazer parte do nosso cotidiano. Um deles era o carteiro da nossa região. Era um homem preto, magro, de baixa estatura. E muitos outras pessoas, homens e mulheres, frequentavam o bar, que recebeu o nome de “Bar do Sossego”, porque não tinha bilhar, jogo de baralho e outros atrativos que os demais bares tinham e que causavam brigas, discussões e até mortes! Eu gostava de ficar perto da mãe, no balcão, ouvindo a voz rouca de Bo...

Uma Manhã Que Ficou Na Tela da Memória, Cadê Você? Antonio Neto

Uma neblina fina cobria o caminho que levava à casa para onde nos dirigíamos. Onde era, eu não  sabia...Era uma estrada feita de imprecisão, de miragens e de iluminuras. Um tapete de orvalho se estendia por toda parte. Apenas os nossos passos e a nossa respiração quebravam o decreto do silêncio. Era 1973, eu tinha 3 anos. Caminhava, tentando acompanhar os passos longos dos meus pais, porque eles tinham que carregar o meu irmãozinho recém nascido e a bolsa com nossos pertences. Eles se revezavam nessa tarefa. Os meus passos eram curtos, havia pedrinhas no caminho e era preciso ter cuidado para não cair.  A estrada era longa, ladeada por imenso eucaliptal. A neblina brincava de atravessar a estrada, de criar figuras estranhas no ar. Ora apareciam unicórnios, ora surgiam peixinhos e outras figuras feitas de fumaça que iam nos seguindo naquele caminho de não sei onde. De repente, ao longe, alguém ligou um rádio. Parei para escutar!  Era uma voz masculina, bonita! Os acordes d...

O Enterro de Maria do Cricaré, Antonio Neto

A notícia da morte de Maria do Cricaré se espalhou como fogo no mato seco por toda a São Mateus . Quem não lhe devia um favor, uma bênção, o socorro na hora do parto, uma garrafada ou mesmo sua intervenção direta perante as autoridades? Fosse pobre ou fosse rico, todo cidadão ou cidadã mateense sabia quem era Maria do Cricaré e sabia respeitar a sua presença. Embora fosse muito pobre, parecia ser uma rainha africana. A majestade estava nos seus gestos, na sua voz e nas palavras que saíam da sua boca. Mesmo as famílias mais racistas da elite mateense tratavam aquela mulher singular com o devido respeito.  Agora, com a notícia de sua morte, a cidade estava paralisada. Parecia que o sol interrompera o seu trajeto no céu e que o vento já não soprava. E, temendo que o banzo tomasse conta da população, as autoridades procuraram apressar o enterro da anciã. Procuraram saber da família. Estavam todos espalhados pelo sul da Bahia, norte de Minas e pelos arredores de Vitória. Em São Mateus s...

O Preto de Dona Conceição, Antonio Neto

      Era o almoço do casamento da minha tia Lúcia com o tio Quim; almoço animado de gente da periferia, muitos compadres e comadres, tios e tias, primos distantes que apareciam para a confraternização. Para as crianças, o evento era uma chance formidável para brincar e fazer travessuras. Havia meninos de vários tamanhos, cores e temperamentos. Ajuntamento de menino não sai coisa que presta, sempre algum inventa alguma peraltice ou até mesmo uma maldade infantil. Na frente da casa havia uma cerca frágil e alguns pés de frutas cítricas. Foi ali que quatro meninos ficaram entrincheirados: Airton, Tonho, Gi e Noel. Entre as pequenas árvores fizeram o quartel-general e ficaram à espera de algum fato que rendesse alguma travessura.    Nessas vilas suburbanas – rebarbas da cidade – vivem pencas de famílias paupérrimas, gente quase sem roupa, sem comida, sem saúde ... Sem o brilho da vida no olhar. Uma dessas criaturas de Deus se aproximou da casa de Dona Terezinha e ...

A Cigana e Outras Revelações, Antonio Neto

     Os dias que se seguiram à última Assembleia das  Crianças Inadequadas foram meio tristes, porque nós isolamos o menino que tinha inventado a história de que as mulheres têm vazamento de sangue. Ele ficou tristinho, sozinho. E nós também ficamos chateados, porque é muito ruim ter que deixar alguém de lado... Mas, fazer o quê? Outro fato veio nos trazer preocupação: ficamos sabendo que a Protetora do Jardim Pinheiro estava muito doente. Ela era uma mulher de pele escura, bastante idosa e muito querida por todos, pois era benzedeira. O nome dela era Dona Fia. Ficamos preocupados! O que seria das crianças daquela área sem a proteção dela?  É assim! As pessoas envelhecem e, um dia, partem... Contudo, soubemos que outra Protetora estava sendo preparada para quando Dona Fia partisse. E eu, em particular, fiquei muito feliz; pois quem iria nos auxiliar seria a minha Tia Isabel, meia-irmã do meu pai. Foi assim que, em certa tarde bastante fria, encontramos a Ti...

A Assembleia das Crianças Inadequadas, Antonio Neto

 In memoriam de Diolina Ribeiro da Silva      Éramos poucas na região, sete no total. Nos conhecíamos desde sempre. Quando éramos bebês, nos comunicávamos pelo olhar. Depois que crescemos mais um pouco, criamos estratégias para nos comunicarmos sem chamar a atenção das pessoas adequadas. Havíamos nascido em corpos inadequados ou na época inadequada: éramos as crianças inadequadas. A cidade jamais poderia nos entender ou nos aceitar plenamente. Nós sabíamos disso!      O Grupo Escolar “Água Vermelha” era o nosso ponto de encontro, porque estávamos espalhadas pelos bairros de Poá: Jardim Emília, Obelisco, Pinheiro e redondezas. Ao ingressarmos na escola, fizemos um forte pacto de proteção, pois éramos os alvos preferidos dos meninos que faziam maldades. Por meio de sinais e de um vocabulário próprio, mantínhamos contato sem despertar suspeitas sobre nós.      Em cada bairro havia um Protetor ou Protetora de crianças inadequadas: homens e m...

Vó Barnabé, Antonio Neto

Debret Quando a mãe conseguia um trabalho, como diarista, para auxiliar nas despesas da casa, meu pai logo perguntava: - Quem vai ficar com as crianças? As crianças éramos eu e meus irmãos. Eu sou o filho da empregada, tenho histórias para contar. A mãe, então, partia para negociações delicadas, envolvendo preços e condições. A primeira a cuidar de nós foi a minha avó paterna, Dina. Estávamos acostumados com ela, pois morava bem perto.  A Vó Dina já era idosa e tinha lá as suas enfermidades que a idade trouxe. Ela possuía todos os traços dos indígenas dos filmes da televisão:  a cor da pele, os cabelos da cor da graúna - longos e lisos - e os traços fisionômicos dos primeiros habitantes do Brasil, como mostravam as ilustrações dos livros da escola. Naqueles dias, nos quais a Vó tomou conta de nós, aproveitávamos para ouvir as histórias da infância dela, vivida no Norte de Minas Gerais, na divisa com a Bahia. Ela gostava de ficar de cócoras. E acocorada, pintava, na tela do tem...

Tarcísio e Glória da Periferia, Antonio Neto

Eu sou filho da empregada. Quando eu e meus irmãos éramos pequenos, minha mãe trabalhou como artesã domiciliar e como diarista. Naquele tempo, as diaristas também eram chamadas de empregadas. Não havia a diferenciação entre as que trabalhavam a semana toda e as que iam alguns dias por semana. Ela complementava a renda familiar com essa atividade. A história, que vou pintar, vem lá do final da década de 70... Calmon Viana é um bairro de Poá. Lá de casa, íamos a pé para Calmon, até porque não existia transporte público nas periferias. 40 minutos de caminhada. Foi lá que a mamis conseguiu emprego. A cada vez que ela voltava, eu ficava atento às histórias fresquinhas que chegavam! Era um casal do Rio Grande do Sul. Ele, Seu Guigui, um gaúcho típico, tradicional, daqueles das enciclopédias. Pela descrição física, o associei ao Tarcísio Meira. Ela, Lara, era uma beldade sulista: Glória Menezes. Sendo assim, a mama trabalhava para Tarcísio e Glória da periferia de São Paulo! Eu achava aqu...

Bestiarii, Antônio Neto

    Pão e circo. É isso o que Roma oferece para os seus pobres. Pão para o estômago faminto. Circo para as almas vazias.     Andar pelas ruas da cidade é o que fazem milhares de molambos humanos. Aprígio é só mais um. Seu corpo come o pão. Seu espírito esvazia-se no circo. No circo ele aprendeu que a vida vale um polegar apontando para cima ou para baixo. Nem abdomens abertos, nem cabeças decapitadas, nem corpos mutilados ou um oceano de sangue conseguem sensibilizá-lo mais. A primeira morte foi difícil segurar no peito. As dezenas de outras, não o incomodam nem um pouco.       Não quer ser gladiador porque teme a inteligência humana. O gladiador experiente luta com a mente, não com os músculos, como a multidão acredita. Ele ainda é muito jovem para ser um gladiador. Seria morto nas primeiras lutas. Por isso prefere ser um bestiarii. Os animais pensam com os músculos, por isso é tão fácil matá-los.     Apesar de ser filho da miséria,...

A Filha da Lavadeira, Antônio Neto

     Olhando as águas que vencem a resistência das pedras, infiltrando-se nas frinchas rochosas, a correnteza conduz o olhar do observador aos locais de remanso, onde as pedras — generosas — quase que formam pequenos tanques nos quais as lavadeiras vêm tirar o seu sustento nas águas do Rio Vermelho.      Quantas mulheres da Cidade de Goiás não recorreram às águas samaritanas do Rio Vermelho para tirar sustento para a família, depois que o marido migrou, em busca de sonhos; arranjou outra família, esquecendo a primeira; ou amasiou-se com a cachaça, entregando-se totalmente aos seus caprichos?      Lavadeiras de Goiás Velho, mulheres-água. A lavadeira traz consigo a aura da penitência. Cumprem sina. Desafiam as dificuldades, os preconceitos, a carestia, os abandonos. Falta tudo à lavadeira, menos uma palavra bendita na boca, um “Deus abençoe!”, um “Deus lhe pague!”, e um “Bom dia!”, que vencem as trevas do pes...