Debret |
perguntava:
- Quem vai ficar com as crianças?
As crianças éramos eu e meus irmãos. Eu sou o filho da empregada, tenho histórias para contar.
A mãe, então, partia para negociações delicadas, envolvendo preços e condições. A primeira a cuidar de nós foi a minha avó paterna, Dina. Estávamos acostumados com ela, pois morava bem perto.
A Vó Dina já era idosa e tinha lá as suas enfermidades que a idade trouxe. Ela possuía todos os traços dos indígenas dos filmes da televisão: a cor da pele, os cabelos da cor da graúna - longos e lisos - e os traços fisionômicos dos primeiros habitantes do Brasil, como mostravam as ilustrações dos livros da escola.
Naqueles dias, nos quais a Vó tomou conta de nós, aproveitávamos para ouvir as histórias da infância dela, vivida no Norte de Minas Gerais, na divisa com a Bahia. Ela gostava de ficar de cócoras. E acocorada, pintava, na tela do tempo, histórias de encanto e terror, que adorávamos!
Certo dia, eu queira ouvir uma história. Mas já eram seis horas. Hora de rezar o rosário. A Vó pegou o terço. Começou aquela faina religiosa diária: “Divino Jesus, nós Vos oferecemos este terço que vamos rezar, meditando nos mistérios da nossa Redenção...”
Ia demorar para acabar... Fiquei ali, em volta, esperando... Parecia não terminar nunca!!
Fiquei impaciente! Já estava quase na hora do retorno da mãe! Quando ela chegasse, teríamos que voltar para casa. E sem ouvir uma história!
Arrastei a cadeira. Deixei uma bacia de alumínio cair. Espirrei. Bocejei. Soltei pum! Fiz de tudo, mas a Vó estava em transe. Nada a tiraria daquela contemplação. De olhos fechados, os seus lábios se moviam, sem articular palavras; enquanto os dedos moviam as contas do rosário, lentamente...
Fui obrigado a lançar mão de um recurso infalível, algo que a irritava muito. O rangido das dobradiças da porta! Movi a porta, para dentro e para fora, várias vezes. As rugas da testa da Vó me mostraram que aquilo estava dando certo. Aquela tortura chinesa era insuportável! De repente, as contas do rosário começaram a passar mais depressa, os lábios se moveram com mais vigor e o final do terço se antecipava...
“Em nome do pai!”
Eles derrubaram e queimaram as nossas florestas...
“Em nome do filho!”
Eles mataram os nossos homens, nossos jovens e os nossos meninos...
“Em nome do Espírito Santo!”
Eles sequestraram as nossas mulheres, nossas jovens e as nossas meninas!
“Amém!”
Sem abrir os olhos, que já era costume dela, a Vó Dina continuou a narrar a história da chegada dos colonizadores aos sertões de Minas Gerais e da Bahia. A derrubada das árvores gigantescas. O fogo varrendo onde era verde e vida. O encontro entre colonizadores e indígenas. Esse encontro foi muito sofrido. Ela me contou das pestes que os homens das cidades trouxeram. Pestes que mataram bebês, crianças, jovens, adultos e velhos. E os que não morreram pelas garras das doenças, foram mortos nos conflitos pela terra. Os colonizadores disseram que vieram trazer salvação para as almas, mas eles estavam cheios de cobiça. Eles queriam as terras. Mas as terras já tinham dono. Então, houve luta. Houve guerra. As tribos já estavam enfraquecidas pelas doenças e pela pobreza que os colonizadores semearam sobre a terra, por isso não puderam resistir, e a cruz trazida por eles foi avançando sobre cadáveres insepultos e esqueletos calcinados. Os colonizadores não respeitavam nada. Nem as matas, nem as águas, nem os animais, muito menos os sobreviventes das tribos. A cruz deles queria muito sangue, tinha sede de encontrar ouro e diamantes e massacrava tudo.
Assim, eles sequestraram uma menina indígena. Ela era muito pequena. Não conseguiu fugir com os demais para as florestas fechadas que ainda estavam de pé. Foi levada para as construções que os colonizadores ergueram sobre as cinzas. Ficou trancada por muito tempo. Se a soltavam, ela fugia desesperada para as matas, na esperança de reencontrar a família dela. Então, iam atrás e a traziam de volta. E a amarravam. Quando vestiam roupas nessa menina, ela as rasgava. Também não comia a comida dos colonizadores. Ela comia frutos, carne preparada sem sal e sem tempero, e verduras, também sem temperos.
Entre os colonizadores, havia poucas mulheres. Vinham muitos homens para a colonização. Homens solteiros. Havia brigas e até mortes por causa da falta de mulheres. Por isso, aquela menina trancada e amarrada era preciosa. Em alguns anos, seria uma mulher.
O tempo passou. As florestas foram derrubadas e queimadas até que já não se tinha nenhuma árvore em pé até onde a vista alcançava. Daí, a menina indígena perdeu as esperanças de voltar ao convívio familiar. Talvez, todos já estivessem mortos. Ela foi crescendo e aceitando as roupas para se vestir. Desamarrada, não tinha mais para onde fugir, pois só havia um deserto de cinzas e brasas à frente dela.
Anos depois, já era uma bela moça. Aprendeu a falar a língua dos colonizadores. Era o tempo do Imperador Pedro II. Ela viu igrejas serem erguidas e as cruzes serem colocadas no topo desses templos. Viu a chegada de negros escravizados. Essas pessoas vinham de um lugar distante, chamado África. Os colonizadores prendiam esses africanos com correntes. Entristecida, ela viu muitos deles ficarem amarrados em troncos. Por vezes, eram chicoteados. Tudo isso os colonizadores faziam em nome de Deus. Mas ela não entendia qual Deus poderia se agradar disso...
Um dia, levaram-na a uma dessas igrejas, para ser batizada e poder se casar com um colonizador que a queria para esposa. O pajé dos colonizadores, que era chamado de padre, escolheu um nome para ela: Maria. Mas ela não quis. Não aceitou de jeito nenhum.
- Teresa?
- Não quero!
- Joana?
- Não quero!
Então, trouxeram-lhe a Bíblia, e começam a ler os nomes bíblicos. Isso durou horas. Até que, alguém, sem querer, leu um nome que a agradou. Ela era esperta. Ouviu um nome que rimava com o da tribo na qual ela nascera. Assim, nem ela nem os descendentes esqueceriam a qual tribo pertenciam.
- Este nome eu aceito. Vou me chamar Barnabé!
De nada adiantou explicarem a ela que era nome de homem. Foi o único que ela aceitou. Para que o batizado acontecesse e ela pudesse se casar, tiveram que concordar.
E assim foi. O nome da minha tetravó é Barnabé.
Barnabé gerou Inácia. Inácia gerou Veraldina, a Vó Dina. E Veraldina gerou Geraldo, que é meu pai.
Nossa! Eu estava prestes a saber de qual tribo eu partilho a ancestralidade, juntamente com africanos e portugueses!
- Vó, qual é o nome da tribo?
- Ora, rima com Barnabé...
- Tonhooooooo! Noeeeel! Betaaaaaa! Era a mãe, que tinha chegado do serviço. A vó abriu os olhos, levantou-se, foi chamar os meus irmãos e nunca mais quis tocar no assunto.
Será que a Vó ficou com medo de que os colonizadores nos encontrassem e trouxessem a sua cruz sangrenta para nos matar também?
Santa Teresa, ES, 03 de Janeiro de 2021
Da série: Eu Sou Filho de Emprega
(1) Tarcísio e Gloria da Periferia
(2) Vó Barnabé
Gostei muito. Parabéns!
ResponderExcluirAgradecido, Ladyce West!
ExcluirAgradecido, Ladyce West!
ExcluirAdorei ler essa história! Ocorreu no Jequitinhonha?
ResponderExcluirMinha avó era do norte de Minas Gerais, perto da divisa com a Bahia. Meu pai nasceu em Salinas - MG. A história aconteceu naquela região.
ExcluirMinha avó era do norte de Minas Gerais, perto da divisa com a Bahia. Meu pai nasceu em Salinas - MG. A história aconteceu naquela região.
ExcluirAdorei. Será que a tribo era Aimoré?
ResponderExcluirSuzana, isso é um mistério que só um exame de DNA poderá resolver. Minha avó não tocou mais no assunto.
ExcluirParabéns pelo texto, que com clareza trás história de boa qualidade, e remonta um período real de nossa colonização, minha bisavó teve história parecida!
ResponderExcluirAgradecido, Gustavo Soares da Rocha!
Excluirprimo que historia linda..e de pensar que eu tbm faco parte dela....
ResponderExcluirCaro primo de Antonio, ele tem outros textos aqui no blog. Pode procurar pelo nome. Boa tarde.
ExcluirAgradecido!
ExcluirMuito bom o texto, me lembrou de minha infância, meus pais contavam muitas histórias também. Geralmente sofridas, muito marcantes, mas eu sempre queria ouvir.
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