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Lugar Algum, Marcelo Valença

Eu vim de longe. Já pertenci a um lugar muito longe daqui. Hoje pertenço a lugar nenhum.
Tenho minhas raízes e meus galhos e dilemas. Mas não permanecerei muito. Quando menos esperares, cá não mais estarei.

Eu passei fome, vi a miséria nos olhos da minha mãe. Passei vergonha. Pobre do pobre que ousa verbalizar seus pensamentos. Sujeito subversivo sujo. Conheci cedo a velhice e a morte e entendi que uma é a liberação da outra. Viramos estrelas e paramos de pesar nas contas da casa. Deixamos de ser fardo ao atingirmos a expectativa.

Morrer de fome não é digno. Morrer sem procurar seu lugar na terra também não é. Morrer sem ser capaz de cavar sua própria cova. Quem morre de fome não morre de doença. Morre de crime. Morre de genocídio de estado, premeditado, corrupto e interminável.

Eu vim de longe, dizia. Já pertenci a outros lugares entre lá e aqui. Alguns me foram convite enquanto outros me foram recusa. Quando a terra não te aceita, nela não podes criar raízes. Toda terra é controlada e comandada. Toda terra já foi conquistada. Em todo canto inóspito deste mundo amplo e generoso, alguém já demarcou posse. Meu lugar é aqui. A gente espera dos outros o convite à compaixão, mas isso não há.

Resta então fluir adiante.

Eu vim de longe, longe, longe. Trouxe meus floemas, xilemas e dilemas. Trouxe minha subversão. Não me permitirei morrer de fome nem morrer sem a compaixão da terra. Não me permitirei morrer aqui, nem lá. Quando um dia quiser deitar minha anarquia, fá-lo-ei no mar. No mar, derramarei meus fluxos e frutos. Declamarei "meu lugar é aqui" e ouvirei dos arrulhos das águas: não há aqui neste lugar.

Quem morre de fome morre de crime. Nunca esquecerei. Quem morre sem ter terra morre de crime. Meu tempo é outro e é longe, longe, longe. Quantos anos e quantas lágrimas precisarei para curar a miséria dos olhos da minha mãe? Quando este momento chegar, terão me restado olhos para meu filho? Terá a terra compaixão novamente, como teve com o menino moribundo e esperançoso que fui?

Eu passei fome. Fui agredido, privado, podado e tolhido. Eu briguei com a noção ampla e farta de que nada de bom sairia de onde vim. Conheci preconceitos e privilégios. Eu vim de longe, longe, longe. De qualquer canto inóspito para qualquer canto privado. Meu canto sempre preso.

Não muito mais permanecerei. Este mesmo canto me fará fluir, como flui o silencioso respirar das plantas, o eterno porvir da terra e a incansável melodia do mar. Serei estrela pois já sou sol, voarei pelas nuvens pois já sou brisa. Brilharei como os olhos da minha mãe e sonharei como os olhos do meu filho, pois já sou digno da terra e do mar.

Meu lugar: longe, longe, longe.

Leia também: Encanto , Marcelo Valença

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