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Mostrando postagens de maio, 2020

Pela Neve, Varlam Chalámov

     C omo é que se abre caminho pela terra virgem coberta de neve? À frente vai um homem, suando e praguejando, mal conseguindo alternar as pernas, o tempo todo atolando os pés na neve fofa e profunda. O homem vai bem à frente, marcando o próprio trajeto com buracos negros irregulares. Ele se cansa, deita na neve, acende um cigarro, e a fumaça da makkorka* estica-se numa nuveninha azul sobre a neve branca e brilhante.O homem já seguiu adiante, mas a nuvenzinha continua ali, onde ele descansou - o ar está praticamente parado. Abre-se caminho sempre em dias calmos, para que os ventos não varram o trabalho humano. O próprio homem determina os pontos de orientação na imensidão da neve: um precipício,uma árvore alta; ele conduz o próprio corpo pela neve como o timoneiro conduz o barco pelo rio, de estuário em estuário.      Pelo rastro das pegadas, estreitas e irregulares, caminham cinco ou seis homens, lado a lado, ombro a ombro. Pisam perto das pegadas, mas não sobre elas. Quando che

Cheguei Há Pouco do Fundo do Rio, Nydia Bonetti

Cheguei há pouco do fundo do rio. Andei em busca do que. Em terra não encontro. Tenho agora a pele coberta de escamas e lodo e os olhos verdes do limo / dos olhos / dos peixes. Vieram pássaros / tentaram me levar. A imagem da superfície era. Apenas reflexo. Silencioso e calmo / o rio. No fundo todas as pedras são. Roladas e os olhos dos peixes refletem as pedras e as sombras das árvores que não toquei. O vento A folha O vento E a garça / finalmente mergulha e me resgata. Fonte: Alguma Poesia

Corpo Estranho, Flora Figueiredo

Percebo um corpo estranho a me rolar pelas entranhas. Não sei bem onde está: se no peito, na garganta, se do lado esquerdo, ou do direito, ãs vezes se acomoda, às vezes se agiganta. Esse corpo estranho já perdura o tempo certo de cristalizar. Se ele veio mesmo pra ficar, me dê licença. Preciso de compressa e água benta, pois se a dor aperta, a febre aumenta, a terra esquenta sob a trilha dos meus pés. Quero também a bula detalhada para não usar a sensação de forma errada, caso isso seja um novo amor, mais uma vez. Conheça Flora Figueiredo . Outras poesias da autora, aqui Imagem: Templo Cultural Delfos

Nascido em 23 de Maio: Carlos de Assumpção

Raízes Para Aristides Barbosa Estou de volta pra casa Estou de volta a meu lar A vida aqui tem sentido Aqui é que é meu lugar   Oxum passeia na praça Xangô conversa no bar Hoje de volta pra casa Convivo com os Orixás   Estou de volta pra casa Aqui tudo é natural Té felicidade é fruto Que se consegue alcançar   Enfim reencontro a fonte Donde axé jorrando está Estou de volta pra casa Estou de volta a meu lar A vida aqui tem sentido Aqui é que é meu lugar   Aqui tem congada samba Batuque pra se dançar Tem mulheres lindas lindas Lindas feito lemanjá Mulheres de largas ancas E doce encanto no olhar   Estou de volta pra casa Estou de volta a meu lar A vida aqui tem sentido Aqui é que é meu lugar   Agora livre de abismo Livre pássaro a voar Aqui tenho vida plena Com a benção dos Orixás   Estou de volta pra casa Estou de volta a meu lar Hoje vivo como vive Caracol no meu quintal. ( Quilombo , p. 73-74)    Leia sobre o autor

Begorotire, o Homem Chuva

Begorotire era um índio de cabelos negros, muito forte e bom caçador. Certo dia, porém, na divisão da caça, foi "passado para trás". Injustiçado ficou furioso e, por causa disso, decidiu que sairia à procura de outro lugar para viver. Pintou toda a família com uma tintura preta que havia retirado do fruto do jenipapo. Pegou um pedaço de madeira pesada e resistente, da qual fez uma borduna Caiapó (grupo indígena habitante da Amazônia brasileira), com o cabo trançado em preto e a ponta tingida com sangue da caça. Chegou então ao alto de uma montanha, levando sua borduna, e começou a gritar. Seus gritos soaram como fortes trovões. Girou fortemente sua arma no ar e de suas pontas saíram relâmpagos. Em meio ao barulho e às luzes, Begorotire, com os olhos alumiados, subiu aos céus. Os índios assustados atiraram suas flechas, mas não conseguiram impedir que Begorotire desaparecesse no firmamento. As nuvens, também assustadas, derramaram chuva que parecia que o mundo vinha abaixo

Nascido em 17 de maio: Carlos Pena Filho

As Dádivas dos Amantes Deu-lhe a mais limpa manhã Que o tempo ousara inventar. Deu-lhe até a palavra lã, E mais não podia dar. Deu-lhe o azul que o céu possuía Deu-lhe o verde da ramagem, Deu-lhe o sol do meio dia E uma colina selvagem. Deu-lhe a lembrança passada E a que ainda estava por vir, Deu-lhe a bruma dissipada Que conseguira reunir. Deu-lhe o exato momento Em que uma rosa floriu Nascida do próprio vento; Ela ainda mais exigiu. Deu-lhe uns restos de luar E um amanhecer violento Que ardia dentro do mar. Deu-lhe o frio esquecimento E mais não podia dar. Fonte: vermelho Imagem: Pixabay

Nascido em 13 de maio: Lima Barreto

       M aio      Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês sagrado me traz, se misturam recordações da minha meninice.      Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no largo do Paço.      Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.      Não me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio.      Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do

Nascido em 11 de maio: Rubem Fonseca

Família é uma merda. Tenho uma saúde de ferro, mas andava sentindo umas dores de cabeça e fui à farmácia comprar aspirina. Foi assim que conheci Genoveva. Ela me perguntou para que eu queria aspirina.   -Para dor de cabeça.   -Aspirina ataca o estômago”.   Se ela trabalhava numa farmácia devia saber o que estava dizendo.   -Então eu tomo o quê?   -Tylenol .”   -Já tomei esse troço e não passou a dor. Ficamos batendo um papo, não tinha outros fregueses na farmácia. Ela morava na rua do Camerino , logo no início, perto da farmácia, que ficava na rua Larga, também conhecida como Marechal Floriano. Eu morava no Santo Cristo.   Gostei de Genoveva. Mesmo sem estar com dor de cabeça, voltei à farmácia no dia seguinte.   -Já acabou o Tylenol ?   -Vim só dizer oi para você.   -Oi.Como é o seu nome?.   -Valdo”.   -Parece nome de jogador de futebol. Você joga futebol? -Jogo. Pelada. Todo brasileiro joga futebol.   -O meu é Geni.