Pular para o conteúdo principal

Nascida em 3 de maio: Nélida Piñon

Nélida Piñon termina novo livro, protesta contra a censura e diz que o espírito e a unidade do país podem se perder
A escritora Nélida Piñon teme que o Brasil perca a sua essência nos conflitos que vive atualmente e manda um recado ao poder: “É preciso que Brasília entenda, o Estado brasileiro, a Presidência entendam que o Brasil já avançou muito na sua história para retroceder.” A reação vem contra o ambiente de censura que reaparece e que ela conhece bem. Diz que é uma “audácia” censurar Machado de Assis. “É tentar arrancar o Brasil do seu próprio mapa.”
Certa vez, Nélida foi a Brasília levar pessoalmente o recado contra a censura. Foi em 25 de janeiro de 1977 e o destinatário era o então ministro da Justiça Armando Falcão. Foi o “manifesto dos mil”, com 1.047 assinaturas, escrito por várias mãos, inclusive as dela, depois de um encontro de escritores no ano anterior. O movimento foi articulado para ser um ato forte contra o que estava impedindo a publicação de inúmeros livros.
— Nasceu em Porto Alegre. Estávamos todos lá, inclusive Clarice (Lispector). E já voltamos decididos. Em São Paulo, alguns jovens escreveram o primeiro esboço em tom muito insurgente. Mas a grande organização foi no Rio, na casa de Cícero Sandroni, posteriormente na casa de José Louzeiro e Ednalda Tavares. Foi uma aventura libertária extraordinária, parecia que estávamos na Revolução Francesa — conta a escritora.
Hoje é preciso lembrar as velhas histórias da resistência, porque o país entrou num espantoso descaminho. A entrevista que fiz com ela, na Academia Brasileira de Letras, teve por testemunha o busto de Machado de Assis. Um dos seus livros mais geniais, o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, estava na lista de Rondônia para ser retirado das escolas. O assunto passou, mas ficou como um exemplo do absurdo a que se pode chegar quando o ambiente de censura se instala.
Naquele começo de 1977, o ministro não os recebeu, mas sim o secretário-geral. E estavam na comitiva, além de Nélida, Lygia Fagundes Telles, o historiador Hélio Silva e Jefferson de Andrade. De lembrança do dia ficou uma foto apenas e alguns bilhetes que os autores escreveram. Em gesto que parece hoje totalmente estranho, Nélida levou na sua bolsa martelo e tachinhas. Caso o governo não recebesse o documento, ela tentaria pregar na porta. Como Robin Hood. Perguntei a Nélida o que tudo isso ensina para o momento atual:
— Que você não pode perder o espírito de alerta. O Estado não é amigo incondicional da criação literária, do pensamento. Há sempre uma incompatibilidade muito grande entre quem pensa, quem fabrica e o Estado, que tem seus interesses e pode sacrificar quem seja em nome desses interesses. O que temos que fazer agora é fomentar essa defesa e fortificar nosso espírito.
Para a escritora, a cultura é parte da civilização:
— O país se ampara, se sustenta, não é na cultura só, é na civilização. A cultura é o cimento da civilização. E no Brasil isso vem se esgarçando, inclusive no que é essencial, vem quebrando uma coisa que eu acho que é um casulo no qual está o espírito brasileiro, o mistério de uma nação. É dentro desse casulo que estão os elementos imateriais, transcendentes, que garantem a unidade nacional. Sem isso corremos o risco de um rompimento. Mais do que o rompimento geográfico, mas de nação, de espírito.
O momento em que até Machado de Assis foi censurado foi para ela, uma apaixonada pelo autor, “um choque”:
— Machado congrega o que o Brasil tem de melhor e mais difícil. Era negro mulato, autodidata, gaguejava. Ele nunca foi à Europa. A viagem que fez foi a Friburgo, a 120 quilômetros. Quando contei isso para Susan Sontag ela ficou deslumbrada. É o homem mais universal do Brasil. Moderno, com texto ambíguo. O Brasil inteiro está lá. É o primeiro grande escritor das Américas a tratar o mundo urbano. Então esses homens de repente contestam a grandeza dele e decidem censurá-lo. Acho que eles deveriam pedir perdão à Nação brasileira.
Nélida diz que há outras formas de proibição aparecendo:
— Em nome inclusive de uma moral duvidosa. Que nem é contemporânea. Mas não quero discutir a questão moral, quero falar da questão cívica. Daqueles valores que fazem parte da democracia.
Combatente ainda aos 82 anos, Nélida acaba de concluir seu novo romance. Ela me contou o título, que mostra o valor da busca do conhecimento: “Um dia chegarei a Sagres”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di...

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica...

Vamos pensar? (18)

Será que às vezes o melhor não é se deixar molhar?