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Mostrando postagens com o rótulo adolescência

Conto de Verão Número 2: Bandeira Branca, Luís Fernando Veríssimo

    Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo montinho de confete, serpentina poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.      Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egipcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.      Só no terceiro carnaval se falaram.      - Como é teu nome?      - Janice. E o teu?      - Píndaro...

Jason, conto de Lívia Garcia-Roza

     -Ângela vem aí - e corri para dar uma última espiada no espelho do banheiro.      Mamãe tirava a mesa. Põe e tira a mesa todo o tempo, está tão treinada que pode fazer isso de olhos fechados. Quando voltei, encontrei mamãe abraçada a um dos pratos, perguntando quem era Ângela. Uma garota, respondi. Jason meu irmão, descaço, peito nu, passando por mim, empurrou minha cabeça:      -Aí garoto! - e continuou se jogando nas poltronas. Mamãe diz que Jason está compondo; precisa relaxar para aguardar inspiração.      Jason tem dezoito anos e eu catorze e meio. Mamãe diz que meu irmão parece artista de cinema. Diz também que o que aconteceu ao Jason foi raro - obra do Criador. A beleza é algo divino, ela agradece, revirando os olhos para o alto.      Eu ainda não cresci, mas parece que um dia isso vai acontecer. Quiseram até me levar ao médico porque continuo do mesmo tamanho; com meu pai também foi assim, e hoje é ...

O Menino e o Mar, (Prólogo) de Marcelo Gleiser

Um homem se aproxima do seu eu verdadeiro quando atinge a seriedade de duma criança que brinca. Heráclito      O menino firmou sua vara de pesca num tubo afincado na areia e olhou para o mar. As ondas rolavam preguiçosamente até a beira, enquanto o sol descia por trás dos prédios. As moças com seus biquinis minúsculos já haviam partido. Os jogadores de vôlei desciam as redes, pensando no chope que iriam beber com os amigos. A praia de Copacabana suspirava, cansada dos abusos de tanta gente. Restavam apenas o menono e alguns outros pescadores, homens aposentados sem muito o que fazer, barrigas estufadas de tanta cerveja, a pele curtida pelo sol de incontáveis tardes à beira d'água. Conheciam bem o moleque de 11 anos, que retornava ao mesmo local três vezes por semana com disciplina jesuita. A rotina não mudava: três anzóis no final da linha, cada um com uma isca de sardinha ou, quando o dinheiro dava, de camarão. O menino corria até a beira e arremessava os anzóis o mais l...

Católico Apostólico Piauiense, Carlos Castelo

Fui uma criança educada sob o catolicismo apostólico piauiense. O cristianismo do Meio Norte difere do romano apenas em um aspecto: o fervor.  O que é coerente com a temperatura média do estado, sempre beirando os 40 graus. A grande mentora da minha espiritualidade foi a avó materna. Dona Alzira, pelas minhas contas, só perdeu em número de leituras da Bíblia para Johannes Gutenberg – pai do famoso Livro Sagrado produzido em tipos móveis. Fora a sua exegese bíblica, ainda havia os terços diários, os rosários apressados e os jejuns. Minha mãe reproduzia, de modo mais suave, as práticas místicas. Era devota de Santa Teresinha do Menino Jesus. E, como boa meio-nortista, com grande fervor. Nosso pastor alemão, para que o leitor tenha ideia, se chamava Tom: era xará do cachorro de Teresa de Lisieux. Era natural que eu tivesse influências das duas. Até os 11 anos, quando me perguntavam o que queria ser quando crescer, respondia, sem titubear: “papa”. Quando estava com 16 anos, em pleno M...

Parada, Antonio Prata

     Olha lá a tia Olga e o Zequinha. A mãe falou que a tia Olga disse que o Zequinha tá indo mal na escola por causa da maconha que ela achou no bolso da calça que ele esqueceu e mandou lavar, mas eu acho que é besteira da tia Olga. O Zezinho sempre foi mal na escola porque ele é muito burro. Nossa, o Zequinha é muito burro. Ihhh, já desconcentrei de novo! Mas também tudo bem porque a gente não tá nem na avenida central ainda. Se bem que o seu Orestes falou que não importa que eu toque só no final, que nós somos uma banda e todo mundo tem que estar o tempo todo atento e não só na sua parte. Mas eu só preciso prestar atenção mesmo quando cantarem "e o sol, poente no horizonte". Quando falar "e o sol,/ poente no horizonte", o Pedrão faz o pam-pam-pam/pam/pam, na tuba e eu lá: plá!, mando ver nos pratos! Beleza. Ontem na casa de Pedrão, a gente treinou a tarde inteira e dava certo. A irmã dele cantava "e o sol, poente no horizonte", ele mandava o pam-pam-pam...

Pedaços de Vida Jamais Desvendados, Ignácio de Loyola Brandão

     No final dos anos 1950, em Araraquara, Mister Pimenta, professor de inglês, teve um gesto generoso.  Toda terça-feira à noite, ele dava uma aula gratuita de reforço de inglês. Classe lotada. Por semanas, lá estive, por interesse na língua e em uma loirinha, a Gilda. O ritual da paquera, na época chamado flerte, era longo, exigia paciência. Em geral, começava no footing, com as mulheres caminhando na calçada entre os dois cinemas e os homens parados no meio-fio. Olha que olha, olha que olha, até que o olhar era correspondido. O footing acontecia aos sábados e domingos. Primeira semana, segunda, terceira, um encontro era marcado e aí dependia de você. As aulas de terça-feira acabavam funcionando como um dia a mais para nos favorecer. Uma noite, consegui descer a escada ao lado de Gilda. Emocionado, sabia que aquela era a chance. Conversamos um pouco, elas tinham horário para regressar à casa, 10 da noite. A certa altura, consegui encaixar a frase, “gostaria de nam...

Quem é Menos Chato? Machado de Assis ou José de Alencar

                        H á mais de dez anos, ao mediar uma oficina de leitura e escrita, um voraz leitor de Harry Potter me perguntou: “Qual é o autor menos chato: Machado de Assis ou José de Alencar?” A questão me intrigou: o que acontecia nas aulas de literatura daqueles estudantes para que os dois autores fossem considerados “chatos”? Durante oito anos investiguei, por meio de questionários e entrevistas com mais de 80 professores e 290 alunos, suas práticas de leitura literária. O cenário é preocupante. Na maioria das aulas, o trabalho com o texto é substituído pela memorização dos períodos históricos literários e das características de época. Além disso, a leitura dos clássicos, difícil sem uma mediação adequada, dá lugar à leitura de resumos, que obviamente não dão conta dos romances estudados.   Por outro lado, a pesquisa constatou que os alunos leem! Talvez não aquilo que seus professores gostariam, m...

O João de Ipumirim

Blém, blém, blém!... Toca o sino da matriz São seis horas da manhã Me acordo, sou o João! O João da poesia O João da antiga Vila Harmonia O João da alegria O bisneto da nona Maria. O João de Ipumirim Que cuida do jardim Que pratica esporte, lazer Dança gaúcha folclórica, prazer. O João que ama a escola Vive chutando bola Ama a rua onde mora Não deixa pássaro na gaiola. O João que faz fogo no fogão Que sapeca o pinhão Que toca seu violão Que bebe o bom chimarrão. O João que brinca no parque da praça Que com o amigo faz graça Que desenha na vidraça Que é feliz quando abraça. O João que vai à piscina Que no judô fascina Que anda de skate na esquina Que sua bicicleta empina. O João que dá bom-dia Pro vizinho, pro amigo, pra tia Que a vida desafia Convivendo com alegria. O João que cultiva o chão Cuida da terra com a mão Planta milho, pipoca, feijão... Divide tudo com o irmão. O João que anda a cavalo Que dá comida pro galo Que no rio En...

Ziraldo, 80 anos!!

  Hoje é aniversário de Ziraldo e o blog publica entrevista concedida pelo autor à Agência O Globo: Ziraldo, um menino oitentão Às vésperas de completar 80 anos, Ziraldo rechaça os mitos da velhice, diz que a libido é mais importante que a ereção e mostra-se pronto a mudar de ideia quando necessário, ao admitir que Monteiro Lobato era racista. Não perdoa, contudo, os amigos que o atacaram por ter recebido indenizações por reparação a danos sofridos durante a ditadura militar. "Eles fizeram questão de me linchar." Ziraldo, 80. Como é isso? Oitenta é quando o cara pode ser chamado de ancião. Antes, é garoto. Se bem que na minha turma de oitentões não tem ancião: Zuenir (Ventura), Roberto Farias, Sérgio Ricardo, Ferreira Gullar, Zé Hugo Celidônio, Alberto Dines, Jaguar, Antônio Abujamra. Não tenho essa coisa de ter saudade da infância, esse papo de que infância é vida boa... Tenho saudades sim da adolescência, do rostinho colado no DCE em BH, da "nossa música...

Pai Não Entende Nada, Luis Fernando Veríssimo

Um biquini novo? - É, pai. - Você comprou um no ano passado! - Não serve mais, pai. Eu cresci. - Como não serve?No ano passado você tinha 14 anos, este ano tem 15. Não cresceu tanto assim. - Não serve, pai. - Está bem, está bem. toma o dinheiro. Compra um biquini maior.  - Maior não, pai. menor. Aquele pai, também, não entendia nada. Pai não entende nada Luis Fernando.Veríssimo L&PM 1991

Pensamento Profundo nº 2, Muriel Barbery

O gato neste mundo Esse totem moderno E, por intermitência, decorativo      Pelo menos, na nossa casa é assim. Se vocês querem compreender uma família, basta olhar para os gatos. Nossos dois gatos são gordos odres que comem croquetes de luxo e não têm nenhuma interação interessante com as pessoas. Arrastam-se de um sofá para o outro, deixando pêlos por todo lado, e ninguém parece ter entendido que eles não têm o menor afeto por quem quer que seja. O único interesse dos gatos é que são objetos decorativos móveis, um conceito que acho intelectualmente interessante mas que não se aplica aos nossos por terem a barriga grande demais.      Mamãe, que leu todo o Balzac e cita Flaubert em cada jantar, demonstra diariamente o quanto a instrução é um engodo fenomenal. Basta olhar para ela junto com os gatos. Ela tem vaga consciência de seu papel decorativo, mas se obstina em falar com eles como se fossem pessoas, o que não lhe viria à mente ...

O Desfile dos Chapéus, Aníbal Machado

à Rubem  Braga O comparecimento de todos os chapéus que tive e usei - não posso precisar se começou no  sonho e aí terminou, ou se no  sonho teve início e prosseguiu no  estado de vigília.         Apresentando-se em  fila indiana ou  em  grupos, êsses chapéus se deslocavam com movimentos próprios, o  que tornava ainda mais  bizarra sua aparição.        Os que vinham  em  grupo voavam baixo num  céu de chumbo - céu que se explica na visão onírica pela leitura dos jornais da véspera,  carregados mais que nunca de acontecimentos nefastos. E o  sonho daquela noite deixara de ser um armistício de repouso.          Eu  sabia que das peças de indumentária o  chapéu é a  que mais transforma a figura do homem, a que mais perto priva de sua intimidade -consciência da vizinhança próxima...