A grande mentora da minha espiritualidade foi a avó materna. Dona Alzira, pelas minhas contas, só perdeu em número de leituras da Bíblia para Johannes Gutenberg – pai do famoso Livro Sagrado produzido em tipos móveis.
Fora a sua exegese bíblica, ainda havia os terços diários, os rosários apressados e os jejuns. Minha mãe reproduzia, de modo mais suave, as práticas místicas. Era devota de Santa Teresinha do Menino Jesus. E, como boa meio-nortista, com grande fervor. Nosso pastor alemão, para que o leitor tenha ideia, se chamava Tom: era xará do cachorro de Teresa de Lisieux.
Era natural que eu tivesse influências das duas. Até os 11 anos, quando me perguntavam o que queria ser quando crescer, respondia, sem titubear: “papa”.
Quando estava com 16 anos, em pleno Milagre Brasileiro, meu pai auferiu altos lucros na Bolsa de Valores. Com a soma, mudamos para um bairro City, colocamos um Ford Galaxy 500 na garagem e fomos conhecer a Europa.
Diferentemente dos que optam pelo “Circuito Elizabeth Arden” (Roma, Paris, Londres), os pilares da nossa viagem foram Lourdes, Fátima e Lisieux – importantes santuários daquele continente.
Apesar de sentir um princípio de ereção ao percorrer os bulevares de Paris (no íntimo, eu era um adorador de Brigitte Bardot), procurei me refrear em nossa chegada a Lourdes.
Voltei a pensar na carreira de papa quando avistei o rochedo de Massabielle. Foi ali onde a Virgem apareceu, em 1858, para Bernadette Soubirous, uma garota de 14 anos.
Na Gruta das Aparições, a emoção de tocar a água que jorrava dos chafarizes, me ajudou a compreender o conceito de religare.
O passeio entrou pela tarde na Basílica São Pio X. As 39 telas que representam diversos santos e beatos me deixou ainda mais contrito.
Voltamos ao hotel, no Boulevard de la Grotte, para descansar antes da procissão das velas à noite.
Ao entrar no oceano de luzes bruxuleantes, dividi meu diminuto espaço com dois brasileiros mais velhos do que eu. Não demorou para me fazerem um convite:
– E aí, vamos ver coisas mais legais do que santos e velas?
O grupo é tudo para um adolescente. Comigo não seria diverso. Saímos os três, à francesa, do cortejo. Logo caímos nas ruas profanas de Lourdes. Percorremos dois quarteirões e, num bar, em frente a um hospital, bateu a sonzeira. Foi difícil acreditar no que presenciamos em seguida: mais de 30 garotas, desacompanhadas, dançando no salão e por cima das mesas.
Era impossível não entrar. Foi botar os pés no boteco e começaram os assobios e gritos. Parecia os Beatles entrando no Shea Stadium, em Nova York. Éramos os únicos do sexo masculino no ambiente.
Uma loira esbelta que lembrou Bardot (mas pode ter sido fantasia…), me abraçou, e foi sussurrando ao pé do ouvido:
– Oh, mon beau petit garçon!
Os outros dois moleques já haviam se atracado com umas gaulesas e dançavam La Javanaise, coladinho.
Regressei ao hotel de madrugada e, com pés de lã, me deitei. Aquele 12 de maio, soube mais tarde, tinha sido o dia da Enfermeira. E, claro, as francesas que comemoravam sua data na festinha, eram o oposto da Notre-Dame de Lourdes. Mas salvaram a minha vida.
Fonte: Estadão
Imagem: Gruta de Massabielle, Lourdes, França
Obras do autor:
Orações Insubordinadas, aforismos de escárnio e maldizer (2009)
Damas Turcas (2012)
Clássicos de Mim Mesmo ((2015)
A Prova Ilícita: verdade ou lealdade (2018)
Crônica Por Quilo ((2019)
Frases Desfeitas (2019)
Damas Turcas
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