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Autobiografia de Um Só Dia, João Cabral de Melo Neto

     No engenho Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, moravam Luiz Antônio Cabral de Mello e sua mulher Carmem Carneiro Leão Cabral de Mello, meus avós paternos, que preparavam uma viagem para ao Recife, para que Carmem, às vésperas do parto de seu segundo filho (ou filha, na época não dava para saber), seguisse o que decretou seu pai: "Meus netos haverão de nascer todos no sobrado da família às margens da maré", como era conhecido por eles o estuário do Capibaribe, que enche e vaza com as marés do oceano. 

     São Lourenço da Mata fica a menos de vinte quilômetros do Recife, mas dá para imaginar como deveriam ser as estradas nessa época.

     Chegaram de noitinha. Posso sentir o desconforto de minha vó, em final de gravidez fazendo uma viagem dessas.

     Ao chegarem, o quarto principal do casarão ainda não tinha sido arrumado para o parto, portanto acomodaram minha avó e sua barriga no quarto dos santos, misto de quarto e capela, onde estavam os santos de devoção dos moradores, além de retratos de antepassados. Não acredito que fossem muito religiosos, supersticiosos eu sei que eram, mas na época era de praxe que as casas tivessem esses quartos.

     Talvez por causa dos sacolejos da viagem, ou por impaciência de meu pai, ele resolveu nascer nessa mesma noite. Vou deixá-lo explicar seu nascimento:  (Inez Cabral)


Autobiografia de Um Só Dia

                                             A Maria Dulce e Luiz Tavares


No Engenho do Poço não nasci:
minha mãe na véspera de mim,

veio de lá para a Jaqueira,
que era onde, queiram ou não queiram

os netos tinham de nascer,
no quarto-avós, frente à maré.

Ou porque chegássemos tarde
(não porque quisesse apressar-me,

e, se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria)

ou porque o doutor deu-me quandos,
minha mãe, no quarto-dos-santos,

misto de santuário e capela,
lá dormiria, até que para ela

fizesse cedo no outro dia
o quarto onde os netos nasciam.

Porém em pleno Céu de gesso,
naquela madrugada mesmo,

nascemos eu e minha morte
contra o ritual daquela Corte,

que nada de um homem sabia:
que ao nascer esperneia, grita

Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,

pois são blasfêmias sangue e grito
em meio à freirice de lírios,

mesmo se explodem (gritos, sangue)
de chácara entre marés, mangues.

Fonte: A Literatura Como Turismo

Imagem: Brasil de Fato

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