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Mostrando postagens de março, 2022

Saudade, Mia Couto

                                                                      Que saudade tenho de nascer. Nostalgia de esperar por um nome como quem volta à casa que nunca ninguém habitou. Não precisas da vida, poeta. Assim falava a avó. Deus vive por nós, sentenciava. E regressava às orações. A casa voltava ao ventre do silêncio e dava vontade de nascer. Que saudade tenho de Deus. Em: O tradutor de chuvas Fonte: Centro Loyola Imagem: Regina Porto

Bibliotecas, Valter Hugo Mãe

As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos porque são lugares de partir e de  chegar.      Os livros  são parentes directos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio a ar, a ver o que existe para depois do que não se vê.      O leitor entra com o livro para para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.      Os livros são também toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam buracos na cabeça. Eles sabem chover e fazer barulho, casam filhos e cor

Hora Bolas, Marcelo Valença

Bubbly - Marcelo Valença Cada sopro Uma loucura Numa bolha de sabão Ploc ploc ploc Mente sã Em corpo são Ploc ploc ploc O brilho fica no ar O sonho corre no chão Texto e imagem cedidos pelo autor.

Parada, Antonio Prata

     Olha lá a tia Olga e o Zequinha. A mãe falou que a tia Olga disse que o Zequinha tá indo mal na escola por causa da maconha que ela achou no bolso da calça que ele esqueceu e mandou lavar, mas eu acho que é besteira da tia Olga. O Zezinho sempre foi mal na escola porque ele é muito burro. Nossa, o Zequinha é muito burro. Ihhh, já desconcentrei de novo! Mas também tudo bem porque a gente não tá nem na avenida central ainda. Se bem que o seu Orestes falou que não importa que eu toque só no final, que nós somos uma banda e todo mundo tem que estar o tempo todo atento e não só na sua parte. Mas eu só preciso prestar atenção mesmo quando cantarem "e o sol, poente no horizonte". Quando falar "e o sol,/ poente no horizonte", o Pedrão faz o pam-pam-pam/pam/pam, na tuba e eu lá: plá!, mando ver nos pratos! Beleza. Ontem na casa de Pedrão, a gente treinou a tarde inteira e dava certo. A irmã dele cantava "e o sol, poente no horizonte", ele mandava o pam-pam-pam

O Que Estou Lendo? Arrancados da Terra, Lira Neto

Jornalista e pesquisador brasileiro faz relato da história do povo judeu na rota Lisboa-Amsterdã-Recife holandesa até a então nascente Nova York Foto: Daniela Levy Mariza Santana      Sefarditas é o termo utilizado para se referir aos judeus originários de Portugal e Espanha. Eles possuem tradições, línguas, hábitos e ritos diferenciados de seus irmãos asquenazes, os judeus oriundos da Europa Central e do Leste. Os historiadores supõem que os sefarditas se estabeleceram na Península Ibérica ainda na época das navegações fenícias, depois da destruição dos vários templos de Jerusalém, e já viviam no local no período da ocupação romana. Embora eles estivessem há muito enraizados na Península Ibérica, muitos inclusive já convertidos à fé cristã, esse fato não os poupou dos horrores da Inquisição da Igreja Católica. Após a expulsão da Espanha pelos reis católicos Isabel de Castela e Felipe de Aragão, e na época em que os tronos espanhol e lusitano foram unificados, muitas famílias de origem

As Mais Belas Coisas do Mundo, professores - Valter Hugo Mãe

     Eu queria ser sagaz, ter perspicácia, estar sempre inspirado. O meu avô pedia que não me desiludisse. Quem se desilude morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantado. O encanto é a única cura possível para a inevitável tristeza. Havia, às vezes, um momento em que discutíamos a tristeza. Era fundamental sabermos que aconteceria e que implicaria uma força maior.      Um dia, explicou, eu passaria a ser capaz de colocar as minhas próprias questões. ofício mais difícil ainda do que procurar respostas. Sozinho, saberia inventar um mistério até para mim mesmo. Como se eu fosse o lado de cá e o lado de lá das coisas. O lado de cá e o lado de lá do mundo. Um cristal com emissão de luz para todos os sentidos, para todas as direções.       Ponderávamos mistérios. O meu avô dizia que as evidências eram todas sustentadas por mistérios. Criava jogos para inventarmos perguntas só para ver se todas as perguntas teriam uma solução. As mais absurdas talvez estejam adiadas, só o futuro lhes sab

O Discurso e o Deserto, Janice Japiassu

Com o acre mel do deserto De ouro veste-se o nome Pronunciado na guerra O sol fecunda as espadas Retesa o arco certeiro E o sete nasce da pedra No silêncio alumioso Da noite mal-assombrada Mistura o grito viçoso Eis a palavra afiada Nos pastos da solidão Dentro do silêncio limpo Voz de toda precisão Fonte: Jornal da Poesia Leia aqui sobe Janice Japiassu                                                                                                                                                                 

Morte das Casas de Ouro Preto, Carlos Drummond de Andrade

Sobre o tempo, sobre a taipa, a chuva escorre. As paredes que viram morrer os homens, que viram fugir o ouro, que viram finar-se o reino, que viram, reviram, viram, já não veem. Também morrem. Assim plantadas no outeiro, menos rudes que orgulhosas na sua pobreza branca, azul e rosa e zarcão, ai, pareciam eternas! Não eram. E cai a chuva sobre rótula e portão. Vai-se a rótula crivando como a renda consumida de um vestido funerário. E ruindo se vai a porta. Só a chuva monorrítmica sobre a noite, sobre a história goteja. Morrem as casas. Morrem, severas. É tempo de fatigar-se a matéria por muito servir ao homem, e de o barro dissolver-se. Nem parecia, na serra, que as coisas sempre cambiam de si, em si. Hoje, vão-se. O chão começa a chamar as formas estruturadas faz tanto tempo. Convoca-as a serem terra outra vez. Que se incorporem as árvores hoje vigas! Volte o pó a ser pó pelas estradas! A chuva desce, às canadas. Como chove, como pinga no país d

O Amor Acaba, Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irm

Política, Mulheres e Futebol Sempre Foram Assuntos de Barbearia. Não Para Crianças. Ignácio de Loyola Brandão

        Ao me olhar, dia desses, minha mulher alertou:       - Não vá para Santa Catarina sem cortar esse cabelo!      Estava quase embarcando para Campos Novos, onde deveria abrir uma festa literária. A cada semana, a cada dia, descubro uma nova cidade realizando um festival, uma feira, uma bienal de livros. Para chegar em Campos Novos deveria apanhar um avião para Florianópolis e fazer baldeação ( palavra que caiu em desuso, era muito usada por ferroviários) para Chapecó, onde um carro iria me esperar e me levar à cidade, rodando duas horas. Quanto mais complicadas, mais gosto dessas viagens, vou penetrando o Brasil, por caminhos, regiões desconhecidos.      E o cabelo? Olhei no espelho o que me resta. Não está uma juba, como dizia minha mãe. Outra expressão da época de infância e juventude era gadelhudo. Não tem no Aurélio. Mas tive lembranças do barbeiro da esquina da rua Seis com Djalma Dutra, antiga Guaianases, o Lazinho Mendes.      Lazinho cortou meu cabelo até a maturidade. A

Conheça A Verdadeira História do 8 de Março.

Março das Mulheres | Conheça a verdadeira história do 8 de março Pesquisadora afirma que a origem da data foi propositalmente dissociada da luta das trabalhadoras da União Soviética Lu Sudré Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 08 de Março de 2019 às 05:50 Todos os anos, divulga-se a história de que o   Dia Internacional da Mulher  surgiu em homenagem a 129 operárias estadunidenses de uma fábrica têxtil que morreram carbonizadas, vítimas de um incêndio intencional no dia 8 de março de 1957, em Nova York. Segundo a versão que circula no senso comum, o crime teria ocorrido em retaliação a uma série de greves e levantes das trabalhadoras.  Embora essa seja a narrativa mais conhecida, quando se fala sobre a origem da data comemorativa, ela não é verdadeira. O primeiro registro remete a 1910. Durante a II Conferência Internacional das Mulheres em Copenhague, na Dinamarca,  Clara Zetkin,  feminista marxista alemã, propôs que as trabalhadoras de todos os países organizassem um dia especial das

Barricada de Livros em Kiev

  A foto de uma janela de apartamento totalmente fechada por livros em Kiev viralizou no Twitter e Instagram. A imagem foi originalmente publicada pelo usuário Lev Schevchenko, que conta que viu a cena no seu bairro, Voskresenka, uma área residencial a nordeste do centro da capital ucraniana. Não foi detalhado quem reside no apartamento. O temor de disparos e fragmentos de bombas entrarem nas residências tem levado os moradores de cidades ucranianas a bloquearem suas janelas da maneira que é possível. A revista americana "The New Yorker" publicou o relato de uma família que também vive num subúrbio a leste de Kiev e igualmente usa livros para tampar as janelas. A jornalista e ativista cultural Lena Samoilenko vive com o marido, dois filhos e seus pais e contou o seguinte: “O quarto das crianças tem uma boa parede interna resistente e a cama deles fica bem ao lado. Achamos que eles vão dormir lá. Então, naquele cômodo, colocamos livros nas janelas, para preencher toda a abertu

Solitude, Djavan

Amor em queda Mesmo tal moeda perde cotação Um mundo louco, evolui aos poucos Pela contramão O erro invade tudo o que é cidade Cai na imensidão Guerra vende armas Mantém cargos, destrói sonhos Tudo de uma vez Sensatez não tem vez Vidas, fardos, meros dados Incontáveis casos de desamor Quanta dor, muita dor Parece tarde falar de amizade Ver com o coração E desse jeito, reparar defeito Estendendo a mão Guerra vende armas Mantém cargos, destrói sonhos Tudo de uma vez Sensatez não tem vez Vidas, fardos, meros dados Incontáveis casos de desamor Quanta dor, muita dor Quem é que sabe o quanto lhe cabe Dessa solitude ? Por isso a hora de fazer é agora Tome uma atitude CD Vesúvio Lunda records/Sony musics 2018

Meu Carnaval, Lima Barreto

     Mas fôste mesmo recrutado?      – Fui; e comi fogo que não foi graça.      – Como foi a história?      – Aproximava-se o carnaval. Como era meu costume, vim para a oficina, onde trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina, pelas bandas do Largo do Rio Comprido.      – Ao chegar à oficina, na Rua dos Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas d’água de um prédio novo.” Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua transversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do mais curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo comandante, um cabo, era um preto. E que preto engraçado! Desengonçado, pernas compridas e arqueadas, pés espalhados – era mesmo um macaco. A farda, blusa e calça, estava toda pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito… Enfim, era u