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As Mais Belas Coisas do Mundo, professores - Valter Hugo Mãe

     Eu queria ser sagaz, ter perspicácia, estar sempre inspirado. O meu avô pedia que não me
desiludisse. Quem se desilude morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantado. O encanto é a única cura possível para a inevitável tristeza. Havia, às vezes, um momento em que discutíamos a tristeza. Era fundamental sabermos que aconteceria e que implicaria uma força maior.

     Um dia, explicou, eu passaria a ser capaz de colocar as minhas próprias questões. ofício mais difícil ainda do que procurar respostas. Sozinho, saberia inventar um mistério até para mim mesmo. Como se eu fosse o lado de cá e o lado de lá das coisas. O lado de cá e o lado de lá do mundo. Um cristal com emissão de luz para todos os sentidos, para todas as direções. 

     Ponderávamos mistérios. O meu avô dizia que as evidências eram todas sustentadas por mistérios. Criava jogos para inventarmos perguntas só para ver se todas as perguntas teriam uma solução. As mais absurdas talvez estejam adiadas, só o futuro lhes saberá responder. Inventar perguntas é aprender.  Quem não aprende tende a não saber perguntar. muita gente não tem sequer vontade de ouvir. Fica do tamanho de uma ervilha, no que às ideias  diz respeito.

     Aprendi que o dinheiro tem valor em troca de muita coisa, mas muita coisa só tem valor de graça. Aprendi que o preço é quase sempre o lado corrompido do valor.

     Vi com meus olhos que uma semente aninhada num bocado de algodão húmido inventa uma árvore e que a árvore inventa o fruto e semente outra vez.  O meu avô dizia que as sementes eram meninos de pedra que nasciam por um bocado de água. Como se fossem pedras com tanta sede que se tornavam capazes de inventar a vida só para poderem beber.

     Escutei como os bichos domésticos podem querer falar. Habituados aos seus donos, eles entendem bem que a linguagem acontece.

     Aprendi que  minha avó ficou doente e precisou morrer.  Por causa de estar muito doente, a avó
precisara morrer para ficar sossegada. não lhe poderíamos falar, mas ela seria um património dentro de nós, uma recordação que a saberia manter como viva. Meu avô corrigiu: podemos falar com ela, ela vai responder de modo diferente. Sua resposta é a nossa própria ideia.

Em: As Mais Belas Coisas do Mundo
Biblioteca Azul, Portugal 2019, págs. 10-19
Imagens originais do livro.

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