Se o negro soubesse que luz sinistra estão destilando seus olhos e deixando escapar como as primeiras fumaças pelas frestas de uma casa onde o incêndio apenas começou!…
Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, porque, em tudo mais, o preto se conserva misterioso, fechado em sua própria pele, como uma caixa de ébano.
Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço, convidando-o? Era a rapariga do momento, devia tê-la seguido… Ah, negro, não deixes a alegria morrer… É a imagem da outra que não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. Afinal, a outra não lhe pertence ainda, pertence ao seu cordão; não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe dera todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: aquele corpo já lhe foi prometido, será dele mais tarde…
Andar na praça assim, todos desconfiam… Quanto mais agora, que estão tocando o seu samba… Está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música, na obsessão de que a amada pode ser de outrem, se abraçar com outro… O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores… Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que fica maravilhosa, “rainha da cabeça aos pés”? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. E nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
O negro fica triste.
E está até amedrontado com as ameaças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca.
A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las, eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse, começaria o Carnaval. O grito dos clarins lhe produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga, de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá ponto no Brasil em que, por esta noite sem fim, haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casas, as pontes, as árvores, os postes parecem tremer e dançar em conivência com as criaturas, e a convite de um Deus obscuro que convocou a todos pela voz desse clarim de fim do mundo?…
A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala. O povo dá passagem aos blocos que abrem esteiras na multidão, entre apertos e gritos.
– Isso não é assim à beça, Jerônimo! Cuidado com essa aíí! É virgem…
Rompem novos cantos. Os “Destemidos de Quintino”, os “Endiabrados de Ramos” estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das portas-estandartes.
Não se vê o corpo delas, vê-se-lhes o ritmo dos passos no pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
– Oh, aquela lá, que colosso!… É pena não poder vê-la; mas é mulata, te garanto…
– Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!… Dezoito anos com certeza… Coxas firmes… Meio maluca…
– A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza… Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela…
– Pelo frenesi, a gente conhece logo.
Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam, paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam…
– Imagino como estão tremelicando os seios daquela, lá longe; aquela diaba deve estar suando… Eta gostosura de raça!
– Cala a boca, Jerônimo… Você acaba apanhando…
Os cordões se entrecruzam, baralham-se os cantos. Vem crescendo agora um baticum medonho de tambores. Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas são do hino… Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória, entre alas do povo.
Se quiser agora sair daquele lugar, já não poderá mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa-lhe fundo no coração. – Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno… Será ela, meu Deus!…
O negro está tremendo. Mas não pode ser ela. Rosinha, quando aparece, ninguém resiste, é um alvoroço, uma admiração gera… Não vê que é assim… Até o ar fica diferente. E o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é bloco de Madureira.
O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim. Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho de Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntarem por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem…
Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar… Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão… Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casas, param os bondes e trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do Carnaval…
Perto, estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam rente, cheias de dengue; sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Se sente mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi de certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se esta tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa. Que culpa tem sua namorada? – essa é que é a verdade.
E está sofrendo, o preto. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem a morena porderá pertencer ainda, do que ser alguém como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda do Geraldão, o safado. Era este, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era o Armandinho, mas esse era direito; seu amigo, de fato, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento enexplicável pelo Armandinho.
Suas pernas o vão levando agora sem direção. Não se acha a caminho de casa, nem se sente completamente na Praça. Algunas trechos de sambas e marchas chegam aos ouvidos, pousam-lhe na alma:
O nosso amor
Foi uma chama…
Agora é cinza,
Tudo acabado
Nada mais…
Tudo acabado, tudo tristeza, caramba!… Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor de corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que não está dançando como os outros?
O negro está hesitante. As horas caminham e bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância, e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: – “Não chegue muito perto, minha filha, que eles avançam…” – A mocinha loura pergunta então ao secretário da Legação se há perigo: – “Mas eles são ferozes?” – “Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos.” – A baiana dos acarajés se ofendeu e resmunga desaforos: – “Nóis é que temo medo de vancês, seu cara de não se que diga; nóis não é bicho, é gente!…”
Passa rente aos olhos da miss um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: – “Eu tinha vontade dançar com um… posso?” – “You are crazy, Amy!…” exclama-lhe a velha, escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça, uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de Samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
– Mataram uma moça!