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Felicidade, sim. Antonio Prata

     
     Vivi por trinta e quatro anos sob o jugo de chuveiro elétrico. Ah, lastimável invento! Já gastei mais de uma crônica amaldiçoando seus fabricantes; homens maus, que ganham a vida propagando a falácia de temperatura com pressão, quando bem sabemos que, na gelida realidade dos azulejos, ou a água sai abundante e fria ou é um fiozinho minguado e escaldante sob o qual nos envolhemos, o cucuruto  no Saara e os pés na Patagônia, sonhando com o dia em que, libertos das inúteis correntes ( de elétrons), alcançaremos a terra prometida do aquecimento central.
     Reclamo de barriga cheia? Sem dúvida. Há problemas bem mais sérios neste mundo, mas sejamos honestos: a morte do vizinho não anula minha dor de dente - e um banho ruim é dez vezes mais triste que uma dor de dente.  Afinal, um molar, quando para de doer, não é capaz por si só de nos dar alegria. Já o banho, quando é bom... Que contentamento uterino é ter a pele envolvida por água abundante, sentir o jorro de 45 graus, no auge do inverno; orgasmo da epiderme.
     Dizem os psicanalistas que, quando pequenos, temos prazer em cada centímetro do corpo. Com o passar do tempo, contudo, tambéma pele vai sendo adestrada e a libido acaba restrita às red light zones de nossas íntimas moradas. Eis  a nossa sina, buscar em vão o Éden perdido: na mulher amada, nas religiões, nas drogas, ou - por não? - numa ducha quente.
     Durante a infância, ouvia minha mãe reclamar do banho e lamentar, frustrada, que não valia a pena fazer reforma numa casa alugada.  Aos vinte, fui morar sozinho e me vi repetindo o mesmo discurso; vicissitudes do inquilinato. No mês passado, contudo, depois de ter casado, juntados os trapos e os FGTS,conseguimos um financiamento e atingi, ao mesmo tempo, o sonho da casa própria e do aquecimento central.
     Com um boiler pra chamar de meu, pensei, meus problemas haviam acabado. Toda melancolia escorreria pelo ralo. Cheguei a imaginar que a metafísica não fosse, como disse o asno de Sancho Pança, uma decorrência do estômago vazio, mas do incômodo térmico: não seriam os p[es frios a razão de querermos anular o corpo e inventar outras realidades - mais morninhas? Houvesse aquecimento central na idade de pedra, teríamos necessitado dos deuses? Tivesse Descartes um bom chuveiro, talvez não desconfiasse  tanto dos sentidos, a ponto de dizer que só pelo pensamento podia afirmar sua existência.
     Pois bem, mudei: por vinte e nove dias e vinte nove noites fui feliz como um bebê no líquido amniótico. Se, no meio da tarde ou da noite, o tédio ou a tristeza me visitavam, lembrava do último banho, imaginava o próximo e sorria,satisfeito. Até que, na trigésima manhã, esta manhã de terça, da qual jamais me esquecerei, me peguei sob a ducha quente pensando numa conta atrasada e resmungando sobre a fila do banco. O banho virara apenas mais um acontecimento banal, feito escovar os dentes ou cortas as unhas, entendi, alheio à pressão e à temperatura, que nenhuma felicidade sobrevive à repetição. Trinta e quatro anos desejando; vinte e nove dias pra perder a graça. Injusta é a matemática da vida.


Trinta e Poucos, Antonio Prata, Cia da Letras - São Paulo 2016, págs.36-37

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