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Mostrando postagens com o rótulo quarta-feira.

O Menino e o Homem (Prólogo) Fernando Sabino

Quando chovia, no meu quarto de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para aparar a água que caía e para que os vazamentos não se transformarem em numa inundação. Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma distração das mais excitantes.      E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal correndo para lá e para cá, e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os diferentes ruídos das gotas d'água retinindo no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão, formavam uma alegre melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de parede dando horas.      Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão,o mesmo que usávamos como entrada ...

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di...

Sugestão de Hoje: Nós Três.

  Saí de férias e optei por ficar dias felizes longe do notebook e celular. Mas para ninguém esqueça do blog deixo algumas sugestões de leitura:  ↓ Nós Três Ah, pode comentar se quiser. Quando eu voltar respondo, tá?

Dos Amores Divididos e Multiplicados, Regina Ruth Rincon Caires

  Arroz, feijão, mexido de ovo e farofa de torresmo. Tudo misturado, amassado. Isso era feito dia após dia, sempre nos mesmos velhos e descascados pratos de ágate. Cada neto era servido com esse manjar dos deuses, carinhosamente temperado de generosidade, doação, amor. A avó compactava a comida no círculo central de cada prato, borrifava algumas gotas de limão-cravo, e com a lateral do garfo fazia uma cruz no centro, dividindo a porção em quatro partes. Dizia que cada parte era dedicada a um dos quatro grandes amores da vida: mãe, pai, avó e avô. E, comprometidos com esses amores, cada um de nós escolhia a parte mais amada para iniciar a refeição. Quase sempre a sequência lógica prevalecia: mãe, pai, avó e avô. Raras vezes essa harmonia era quebrada, e quando isso acontecia nem precisava investigar: havia uma surra atrelada a isso. Uma surra dada ou uma surra prometida. Se bem que isso era muito particular. Se havia alguma inversão, ninguém comentava. Acontecia dentro ...

O Homem Que Queria Eliminar a Memória,Ignácio de Loyola Brandão

     Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. Disse que era caso de vida e morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham; subitamente, estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar-comum.      Estava na sala diante do doutor. Uma sala branca, anônima. Por que são sempre assim, derrotando a gente logo de entrada?      O médico:      – Sim?     – Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.     – Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?      – Porque eu quero.      – Sim, mas precisa me explicar. Justificar.      – Não basta eu querer?      – Claro que não.        – Não sou do...

Papai- e- mamãe, Ivo Korytowski

          Disse que logo descobriu que as mulheres eram diabos disfarçados, sereias traiçoeiras, tentações infernais, peçonhentas no coração e na boca, copuladoras vorazes. (...) Que traíam e levavam a alma do homem ao inferno. Mas nada havia de tão delicioso quanto este inferno. Ana Miranda, Boca do inferno       Imaginem um professor respeitável, espécie de professor Immanuel Rath (o velho professor que se apaixona pela cantora de cabaré, a Marlene Dietrich, no clássico filme Anjo Azul) dos nossos tempos. Doutor em Letras pela Universidade de Vincennes, maior autoridade brasileira em crítica biográfica, a crítica literária que se baseia no estudo da vida do autor, leitor voraz dos clássicos da literatura univer...