Arroz, feijão, mexido de ovo e farofa de
torresmo.
Tudo misturado, amassado. Isso era feito dia
após dia, sempre nos mesmos velhos e descascados pratos de ágate. Cada neto era
servido com esse manjar dos deuses, carinhosamente temperado de generosidade,
doação, amor.
A avó compactava a comida no círculo central de
cada prato, borrifava algumas gotas de limão-cravo, e com a lateral do garfo
fazia uma cruz no centro, dividindo a porção em quatro partes. Dizia que cada
parte era dedicada a um dos quatro grandes amores da vida: mãe, pai, avó e avô.
E, comprometidos com esses amores, cada um de
nós escolhia a parte mais amada para iniciar a refeição. Quase sempre a
sequência lógica prevalecia: mãe, pai, avó e avô. Raras vezes essa harmonia era
quebrada, e quando isso acontecia nem precisava investigar: havia uma surra
atrelada a isso. Uma surra dada ou uma surra prometida. Se bem que isso era
muito particular. Se havia alguma inversão, ninguém comentava. Acontecia dentro
das cabecinhas. Sei que acontecia isso porque inverti algumas vezes.
Enquanto comíamos, a avó, de longe, sempre
atarefada com a lida da casa, cautelosamente controlava a nossa alimentação.
Era comum ouvir:
- Quem já comeu uma parte? Didi, você está sem
fome? Lúcia, a comida não está boa? Faltou sal?
Ela sabia que a comida estava sempre boa. Nunca
faltou sal e nem sobrou. Nunca errou a mão em nada. Ali estava o amor mais
saboroso que uma criança poderia receber. Era uma cumplicidade de afetos
tamanha que espantava qualquer insegurança, qualquer medo, qualquer tristeza.
Era um porto seguro.
Com o passar do tempo, fui percebendo que
naquela divisão faltavam partes. Havia mais dois amores a serem colocados ali,
no meu prato. Meu irmão e minha irmã.
Então, sem alarde, comecei a repartir as
porções do pai e da mãe, de modo a serem quatro. Ali estavam os dois que
faltavam. E ficava feliz assim...
Fiz isso por algum tempo sem ser notada. Quero
dizer, pensando não ser notada. Imagina se isso seria possível! Nada escapava
da tenência sempre zelosa da avó. E um dia, enquanto eu multiplicava as minhas
divisões, ela aproximou-se de mansinho e, com aquele olhar que jorrava ternura,
me disse:
- Existem outros amores, não é mesmo, menina?!
Depois do susto, sentindo o afluxo do sangue
ruborizando o meu rosto por perceber que ela havia descoberto o meu feito, e
não querendo que ela se sentisse afrontada pela minha iniciativa, prontamente
coloquei-me de pé. E ela, no intuito de me tranquilizar, passou as mãos pelos
meus cabelos, e com a maior serenidade do mundo, me disse:
- Ao longo da vida, minha neta, você irá
encontrar muitos amores. Alguns serão somados, outros nascerão... Serão tantos, mas tantos, que não caberão nem
no maior prato do mundo!
E ela estava com a razão...
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