Quem mora em prédio sabe do que estou falando. Há todo um mecanismo sociológico engendrando as relações entre condôminos. estes, na maioria, têm uma convivência precária, de piscina e elevador.Não se visitam, nem saem juntos, mas conversam animadamente nos encontros episódicos, como se fossem velhos amigos. Gracejam sobre futebol, falam mal do síndico e da República.Parecem detestar o seu país. "Só mesmo no Brasil!", costumam dizer, referindo-se a uma sacanagem qualquer. São favoráveis à pena de morte, votam em Maluf.
Os condôminos, com raras exceções, fazem questão do máximo respeito à hierarquia dos elevadores: o social para as famílias residentes, o de serviço, para empregadas domésticas. Pois foi neste último que me aconteceu entrar às pressas. Sem olhar direito para uma pessoa que lá estava, cumprimentei maquinalmente: bom-dia! Não houve resposta. Era uma senhora de certa idade, usando avental de empregada. Olhava-me com um certo espanto por ter sido cumprimentada. Não fora grosseria, fora susto. Jamais recebera um bom-dia no elevador. Isso ela me disse na saída, muito envergonhada, quando perguntei por que não respondera minha saudação.
Acho que deve haver elevador de serviço apenas para carrinho de mercadorias, entrega de encomendas, mudanças etc. Pessoas que moram ou trabalham no prédio e visitantes, indistintamente, devem tomar o elevador que chegar primeiro. Se desse a minha opinião numa assembléia de condôminos seria questionado veementemente, pois alguns fatos comprovam que há uma esmagadora tendência pela divisão dos elevadores.
É um destes fatos que venho narrar, com uma espécie de expiação. Deu-se ontem à noite, no elevador social, que estava lotado. As pessoas, como eu, chegavam do trabalho. Notei, no canto, uma negrinha encolhida. Era empregada doméstica. Quase todos olhavam para ela com um ar de reprovação. Logo surgiu o porta-voz do grupo, um senhor de voz autoritária: "Você não sabe que as empregadas não devem usar o elevador social?" Outras vozes fizeram comentários apoiando a repreensão. A menina finalmente ensaiou um justificativa: "Eu estava apressada..." O porta-voz caprichou no timbre, repetiu a censura. Tive ímpeto de protestar, defender a criaturinha humilhada. Estávamos a 10 andares do meu apartamento.Seria um ato mínimo de coragem moral insurgir-me contra a discriminação. O olhar da negrinha cruzou com o meu. Pareceu-me um pedido de socorro. Continuei calado. O elevador chegou ao meu andar. Em casa, pacifiquei a consciência, argumentando para mim mesmo que a timidez me impedira de reagir. Mas não foi timidez, não. Foi covardia.
FALCÃO, Aluízio. Crônicas da vida boêmia.1.ed. São Paulo, Ateliê Editorial1998,p. 98-100.
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