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Mostrando postagens de maio, 2021

Murar o Medo, Mia Couto

 Bom, nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição. Preciso de um abrigo, preciso de um refúgio. É um texto que vou ler... o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente. Não sou capaz em sete minutos.  Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Murar o Medo. Murar o Medo O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam n

Clube Errante: 30 Dias Para Ler e 1 Noite Para Conversar

     Livro Errante, grupo de leitura começado no Orkut , funcionando muito bem até hoje pelo Facebook, precisou adaptar-se aos novos tempos.  Estamos aprendendo a ler em grupo com discussão virtual após a leitura.        O Clube Errante começou em abril, com o livro De Mary Shelley: Frankenstein que surpreendeu a todas as participantes. Em maio, discutimos Urupês de Monteiro Lobato. Ninguém no grupo conhecia a obra adulta do autor e Urupês foi uma surpresa. Agradou, desagradou, causou polêmica, deixou dúvidas e aplausos, curiosidade. Em junho  é a vez do livro Timbuktu , de Paul Auster: A amizade entre um vira-lata e um poeta semilouco: esta é uma história de amor sem cinismo ou ironia, e, para contá-la, Paul Auster compôs Timbuktu (1999), um misto de romance e fábula. Em inglês, Timbuktu (nome de uma cidade em Mali) designa um lugar tão distante que nunca se consegue chegar lá. Para Willy, o poeta maldito, o mendigo visionário, é o lugar para onde vão os mortos: onde o mapa deste mun

Abobrinhe-se, Natascha Duarte

Não é por acaso. Deve ser a pandemia. O fato é que coisas estranhas estão acontecendo no meu quintal. Primeiro foi um pato no telhado. Surgiu com bondade e se colocou altivo em primeiro plano e acima de nós para que todos o vissem. Branco, penas plenas e boniteza. Ficou quanto quis e se foi do jeito que veio. E teve a galinha, porque a galinha briga com o galo e vem pra cá refletir se volta para ele ou continua brigada fazendo drama. As galinhas não conto mais, aparecem tanto do lado esquerdo quanto do direito do jardim, vêm do Seu João ou do Seu Sebastião, são já minhas amigas as magricelas, e são evoluídas e pouco amadas, como algumas mulheres que conheço. Para uns as galinhas são apenas comida, para uns as mulheres também. Pouco depois veio novo pato, nova galinha, um gambá e dois ratos. Dos últimos não ouso tecer palavra (Clarice em Perdoando Deus faz isso por todos os seres do mundo). Sorte a minha ter gatos e a Clarice. Sentado ao pé de uma jabuticabeira o pato número dois

Um Gentil Ladrão, Mia Couto

      A minha falecida mulher dizia que a culpa era nossa porque escolhemos viver longe dos lugares onde há hospitais. Ela, coitada, não sabia que era o inverso: os hospitais é que se instalam longe dos pobres. É uma mania deles, dos hospitais      Batem à porta. Bater é uma maneira de dizer. Moro longe de tudo, só a fome e a guerra me vêm visitar. E agora, na eternidade de mais uma tarde, alguém fuzila com os pés a porta da minha casa. Vou a correr. Correr é uma maneira de dizer. Arrasto os pés, os chinelos rangendo no soalho. Com a minha idade, é tudo o que posso. A gente começa a ficar velho quando olha o chão e vê um abismo.      Abro a porta. É um homem mascarado. Ao notar a minha presença, ele grita – Três metros, fique a três metros!      Se é um assaltante, está com medo. Esse temor inquieta-me. Ladrões medrosos são os mais perigosos. Retira da bolsa uma pistola. Aponta-a na minha direção. É estranha aquela arma: de plástico branco, emitindo um raio de luz verde. Aponta a pist

A Não Violência, Caminho Que Devemos Aprender a Trilhar. Indignai-vos! Stéphan Hessel

     Estou convencido de que o futuro pertence à não violência, à conciliação das diferentes culturas. É por esta via que a humanidade deverá superar a próxima etapa. E aí eu me junto a Sartre: não podemos desculpar os terroristas que jogam bombas, mas podemos entendê-los. Sartre escreveu, em 1947: "Eu reconheço que a violência, sob qualquer forma que se manifeste, é um fracasso. Mas um fracasso inevitável, porque estamos em um universo de violência. E, se é verdade que o recurso à violência contra a violência se arrisca a perpetuá-la, também é verdade que é o único meio de fazer com que ela cesse." A isto acrescentei que a não violência é um meio seguro de fazer  a violência cessar.  Não podemos apoiar os terroristas como Sartre fez, em nome deste princípio, durante a guerra da Argélia, ou por ocasião do atentado nos Jogos de Munique, em 1972, cometido contra atletas israelenses. Não é eficaz, e Sartre acabaria se questionando, no final da vida, sobre o sentido do terrorismo

Indiferença: A Pior das Atitudes - Indignai-vos (4) Stéphane Hessel

     É verdade, os motivos para se indignar atualmente podem parecer menos nítidos, ou o mundo pode parecer complexo demais. Quem comanda, quem decide? Nem sempre é fácil distinguir entre todas as correntes que nos governam. Não lidamos mais com uma pequena elite cujas ações entendemos claramente. É um vasto mundo, no qual sentimos bem em que medida é interdependente. Vivemos em uma interconectividade que nunca existiu antes. Para vê-las é preciso olhar bastante, procurar. Digo aos jovens: procurem um pouco, vocês vão encontrar. A pior das atitudes é a indiferença, é dizer "não posso fazer nada, estou me virando". Quando assim se comportam, vocês estão perdendo um dos componentes indispensáveis: a capacidade de se indignar e o engajamento, que é consequência desta capacidade.      Hoje, podemos identificar dois novos grandes desafios:      1) A imensa distância entre os muito pobres e os muito ricos, distância que não para de crescer. Esta é uma novidade dos séculos XX e XXI.

Minha Indignação a Respeito da Palestina. Indignai-vos! (5) Stéphane Hessel

     Hoje minha principal indignação diz respeito à Palestina, à Faixa de Gaza, à Cisjordânia.  A fonte da minha indignação é o clamor à diáspora lançado por israelenses inflamados: vocês, nossos primogênitos, venham ver aonde nossos dirigentes levaram nosso país, esquecendo os valores humanos fundamentais do judaísmo. Eu lá estive em 2002, e cinco outras vezes, até 2009. Todos devem imperiosamente ler o relatório sobre Gaza de Richard Goldstone, de setembro de 2009, no qual esse juiz sul-africano, judeu, que até se diz sionista, acusa o exército israelense de ter cometido "atos comparáveis a crimes de guerra e, em certas circunstâncias, crimes contra a humanidade" no decorrer da operação "chumbo fundido", que durou três semanas. Em 2009, eu e minha esposa retornamos a Gaza - onde só pudemos entrar graças aos nossos passaportes diplomáticos - com o objetivo de estudar ao vivo o que esse relatório dizia.  As pessoas que nos acompanhavam não foram autorizadas a entrar

Duas Visões da História. Indignai-vos! (3) Stéphane Hessel

     Quando tento entender o que provocou a fascismo, o que fez com que nós franceses fôssemos invadidos por ele e por Vichy*, digo a mim mesmo que as pessoas tinham posses, em razão de seu egoísmo, sentiram medo terrível da revolução bolchevique. Elas se deixaram guiar por seus temores. Mas se hoje, como naquela época,  um minoria ativa se levantar, isso será suficiente; teremos aí a levedura para que a massa cresça. Com certeza, a experiência de alguém muito idoso como eu, nascido em 1917, se diferencia da dos jovens de hoje. Muitas vezes peço a professores ( do ensino fundamental) que me deem a possibilidade de intervir junto aos seus alunos, e lhes digo: vocês não têm as mesmas razões evidentes para se engajar. Resistir, para nós, era não aceitar a ocupação alemã, não aceitar a derrota.  Era relativamente simples. Simples como a que se seguiu, a descolonização. Em seguida, veio a guerra da Argélia. Era necessário que a Argélia se tornasse independente, isso era óbvio. Quanto a Stal

Indignai-vos!, Stéphane Hessel (2)

 O Motivo da Resistência é a Indignação Hoje em dia, ousam dizer-nos que o Estado não pode mais  garantir o custo dessas medidas cidadãs. Mas, como é possível que falte dinheiro para manter e prolongas as conquistas quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente, desde a Libertação, período em que a Europa esta arruinada? Só se for porque o poder do dinheiro, combatido pela Resistência, nunca foi tão grande, insolente e egoísta para com seus próprios servidores, até mesmo nas mais altas esferas do Estado. Os bancos, doravante privatizados, mostram-se antes de tudo preocupados com seus dividendos e com altíssimos salários dos seus dirigentes, não com o interesse geral. A distância entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, a competição nunca foi tão incentivada.      O razão básica de ser da Resistência era a indignação. Nós, veteranos dos movimentos de resistência e das forças combatentes da França Livre, apelamos às jovens gerações para manter viva a indignaç

Indignai-vos!, Stéphane Hessel (1)

      Noventa e três anos. Pode-se falar em etapa final. O fim não está longe. Que sorte poder aproveitar para lembrar o que serviu de base ao meu engajamento político: os anos de resistência e o programa elaborado há 66 anos pelo Conselho Nacional de Resistência! Devemos a Jean Moulin, no âmbito desse conselho, a reunião de todos os components da França ocupada, os movimentos, os partidos, os sindicatos, para proclamarem sua adesão à França combatente e ao único chefe que ela reconhecia: o general De Gaulle. De Londres, onde se juntara a De Gaulle em março de 1941, soube que esse Conselho havia organizado um programa e que o tinha adotado em 15 de março de 1944, propondo para a França libertada um conjunto de princípios e de valores sobre os quais se apoiaria a moderna democracia de nosso país.       Mais do que nunca, hoje temos necessidade desses princípios e valores. Precisamos nos manter vigilante, todos juntos, para que esta continue sendo uma sociedade da qual nos orgulhemos; n

Mais Que Garotos, Natascha Duarte

  Capítulo 1 O ano é outro, pra frente dos eventos que afastaram os homens de seus sonhos e antes da salvação. . Religião não existe. Quase não existe mundo. Num ponto do globo terrestre mais ao sul dois rapazes escapam de um lugar sinistro. Uma camionete caindo aos pedaços anuncia que chegou. Eles entram no carro e fogem dali. Os irmãos nasceram na Terra da Seca, a mesma terra que virou deserto de tanto o sol queimar. Foram separados pequenos. Um com o pai outro com a mãe seguiram destinos diferentes. Em um lugar abalado por uma guerra na fronteira entre dois países foi criado Lucas, 15 anos, menino impronto como um reboco de parede. O mais velho viu a mãe casar com um empresário do ramo de gemas preciosas. Virgílio pegou carona na beleza de esmeraldas e diamantes, tem 17, e é bonito como a noite. Durante a segunda metade do fim do mundo, e magicamente, foram colocados juntos no mesmo Centro de Aprimoramento do Caráter. Conheceram-se sem se conhecer e por acaso ficaram amigos durante