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Duas Visões da História. Indignai-vos! (3) Stéphane Hessel

     Quando tento entender o que provocou a fascismo, o que fez com que nós franceses fôssemos invadidos por ele e por Vichy*, digo a mim mesmo que as pessoas tinham posses, em razão de seu egoísmo, sentiram medo terrível da revolução bolchevique. Elas se deixaram guiar por seus temores. Mas se hoje, como naquela época,  um minoria ativa se levantar, isso será suficiente; teremos aí a levedura para que a massa cresça. Com certeza, a experiência de alguém muito idoso como eu, nascido em 1917, se diferencia da dos jovens de hoje. Muitas vezes peço a professores ( do ensino fundamental) que me deem a possibilidade de intervir junto aos seus alunos, e lhes digo: vocês não têm as mesmas razões evidentes para se engajar. Resistir, para nós, era não aceitar a ocupação alemã, não aceitar a derrota.  Era relativamente simples. Simples como a que se seguiu, a descolonização. Em seguida, veio a guerra da Argélia. Era necessário que a Argélia se tornasse independente, isso era óbvio. Quanto a Stalin, todos aplaudimos a vitória do Exército Vermelho sobre os nazistas em 1943. Mas quando tivemos conhecimento dos grandes processos stalinistas de 1935, e mesmo se achássemos que era preciso manter ouvido aberto às mensagens do comunismo, ao menos para contrabalançar a influência do capitalismo norte-americano, a necessidade de nos opormos a essa forma insuportável de totalitarismo se impôs como uma evidência. Minha longa vida deu-me uma sucessão de motivos para me indignar.

     Esses motivos nasceram menos de uma emoção do que de uma vontade de engajamento. O jovem normalista que eu era foi muito marcado por Sartre, um condiscípulo mais velho. A Náusea e o Muro, não O Ser o O Nada, foram muito importantes na formação de meu pensamento. Sartre nos ensinou a dizer a nós mesmos: "Vocês são responsáveis enquanto indivíduos". Era uma mensagem libertária. A responsabilidade do indivíduo que não pode confiar em um poder nem em um deus. Pelo contrário, é necessário engajar-se em nome de sua responsabilidade como pessoa humana. Em 1939, quando entrei para a Escola Normal da Rua Ulm, em Paris, entrei como fervoroso discípulo do filósofo Hegel, e me inscrevi no seminário dado por Maurice Merleau-Ponty. Seus ensinamentos exploravam a experiência concreta, a do corpo e de suas relações com os sentidos, grande singular diante do plural dos sentidos. Mas meu otimismo natural, que quer que tudo o que seja desejável seja possível, me levava mais para o lado de Hegel. O hegelianismo interpreta a longa história da humidade como tendo um sentido: é a liberdade do homem progredindo etapa por etapa. A história é feita de choques sucessivos, levam-se em conta os desafios. segundo ele, a história das sociedades progride e, no fim, depois de atingir sua liberdade completa, o ser humano tem no Estado democrático sua forma ideal.

     É claro que existe uma outra concepção da história. Os progressos feitos pela liberdade, a competição, a corrida para ter "sempre mais"; isso pode ser vivido como um furacão destruidor. É assim que um amigo de meu pai a apresentava, o homem que dividiu com ele a tarefa de traduzir para o alemão Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Esse amigo era ninguém menos que o filósofo alemão Walter Benjamin. Ele havia tirado uma mensagem pessimista de um quadro do pintor suíço Paul Klee, o Angelus Novus, no qual a figura do anjo abre os braços como que para conter e afastar uma tempestade, que Benjamin identificou como o progresso. Para ele, que se suicidou em setembro de 1940 para fugir do nazismo, era o progressão irresistível de catástrofe em catástrofe.

*Vicky:  estado francês dos anos 1940 a 1944, um governo fantoche de influência nazista. (N.T)

Indignai-vos! Stéphane Hessel; tradução Marli Peres - São Paulo: Leya - 2011

Págs.17-20

Imagem: Angelus Novus, Paul Klee - 1920
Aquarela,31,8 x 24,2cm - Museu de Israel, Jerusalem


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