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O Preto de Dona Conceição, Antonio Neto

      Era o almoço do casamento da minha tia Lúcia com o tio Quim; almoço animado de gente da
periferia, muitos compadres e comadres, tios e tias, primos distantes que apareciam para a confraternização. Para as crianças, o evento era uma chance formidável para brincar e fazer travessuras. Havia meninos de vários tamanhos, cores e temperamentos. Ajuntamento de menino não sai coisa que presta, sempre algum inventa alguma peraltice ou até mesmo uma maldade infantil. Na frente da casa havia uma cerca frágil e alguns pés de frutas cítricas. Foi ali que quatro meninos ficaram entrincheirados: Airton, Tonho, Gi e Noel. Entre as pequenas árvores fizeram o quartel-general e ficaram à espera de algum fato que rendesse alguma travessura.

   Nessas vilas suburbanas – rebarbas da cidade – vivem pencas de famílias paupérrimas, gente quase sem roupa, sem comida, sem saúde ... Sem o brilho da vida no olhar. Uma dessas criaturas de Deus se aproximou da casa de Dona Terezinha e Seu Wanil, anfitriões daquela festa. Era o Preto de Dona Conceição. Ele foi se aproximando devagarinho, pelas beiradas, de mansinho. Mal vestido e mal banhado: má sina de subúrbio... Foi chegando como quem não vem, chegando perto como se para longe fosse. Os meninos da cerca, sob a sombra das árvores, observavam, tomavam tenência, adivinhavam as intenções do pequeno sofredor... Será que o ser humano nasce já com reservas de maldade ou é contaminado por ela depois do parto? Não sei dizer. Sei que ela existe.

   Telepaticamente, os quatro pequenos do Forte das Mexeriqueiras combinaram tudo. Decidiram. Pedrada. Pedrada. Pedrada. Pedradaaaaaa!!!

   O sofredorzinho desviava-se das pedradas, mas não se afastava. A fome doía mais que o apedrejamento. A rejeição dos amiguinhos e a humilhação pública extraíam  as lágrimas cristalinas do fundo dos olhos súplices.

  Entre os risos e as vozes alegres, o grito dos meninos ecoava na hora mais ensolarada do dia:

   - Vai embora, vai embora!

   E o Lázaro moderno não ia...

   Do nada, apareceu Dona Terezinha com um prato bem servido nas mãos. Nada falou sobre a deplorável cena, nem uma repreensão ... Só o exemplo calado dos samaritanos.

   Sempre que ouço a Parábola do Bom Samaritano, lembro-me da figura singela da minha avó, sua força muda e constante, inabalável e modesta. No mundo há grandes homens e mulheres que ficaram famosos e são reverenciados, mas há também os seres humanos que são gigantes na pequenez e obscuridade de suas vidas repletas de solidariedade e fé.

   Hoje, o Preto de Dona Conceição vive Além das Dores, bem longe das pedradas que o mundo usou para soterrá-lo vivo. Eu não me esqueci do ato daquele dia ... Sei que ele também não ...

   - Deus abençoe, Dona Terezinha! Essas palavras do Preto de Dona Conceição ecoam na minha memória desde então. Aprecio esse agradecimento mais do que qualquer outro. Que Deus abençoe Dona Terezinha Inácia Guedes e todas as mãos generosas e anônimas que amparam e reerguem os desacreditados do mundo.


NETO, Antonio. Memorial do Alto Tietê. Guaratinguetá: Penalux, 2015

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