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Mostrando postagens de abril, 2022

Perdoando Deus, Clarice Lispector

Eu ia andando pela avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenh

Autobiografia de Um Só Dia, João Cabral de Melo Neto

     No engenho Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, moravam Luiz Antônio Cabral de Mello e sua mulher Carmem Carneiro Leão Cabral de Mello, meus avós paternos, que preparavam uma viagem para ao Recife, para que Carmem, às vésperas do parto de seu segundo filho (ou filha, na época não dava para saber), seguisse o que decretou seu pai: "Meus netos haverão de nascer todos no sobrado da família às margens da maré", como era conhecido por eles o estuário do Capibaribe, que enche e vaza com as marés do oceano.       São Lourenço da Mata fica a menos de vinte quilômetros do Recife, mas dá para imaginar como deveriam ser as estradas nessa época.      Chegaram de noitinha. Posso sentir o desconforto de minha vó, em final de gravidez fazendo uma viagem dessas.      Ao chegarem, o quarto principal do casarão ainda não tinha sido arrumado para o parto, portanto acomodaram minha avó e sua barriga no quarto dos santos, misto de quarto e capela, onde estavam os santos de devoção dos mo

Memória de Livros, João Ubaldo Ribeiro

Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e vivíamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias depois. Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das últim

Por que Cantor e Atriz Na Academia Que é de Letras?

Fiz essa pergunta quando, por acaso, descobri que Santos Dummont tinha sido eleito Imortal para a cadeira 38. Era óbvio para mim que só quem fosse escritor poderia entrar para a Academia Brasileira de Letras. Aprendi que não.  Esse ano, por causa das eleições de Fernanda Montenegro (cadeira 17) e de Gilberto Gil (cadeira 20), a polêmica, na verdade, o desconhecimento voltou a ocupar espaço.  Trago por isso o que recortei e colei do site da própria A.B.L: Criada por iniciativa de Lúcio de Mendonça, reuniu um grupo de 40 escritores, dentre os quais Machado de Assis, à época um de seus mais idosos fundadores. Autor já consagrado, com inconteste ascendência sobre os mais jovens, presidiu a Casa até morrer, em 1908. Desde cedo a Academia povoou o imaginário da intelligentsia brasileira, provocando reações extremadas de amor e ódio, estas, muitas vezes, provindas de candidatos que não lograram êxito em tentativas eleitorais. De todo modo, no crepúsculo do século XIX o surgimento de uma conf

Poemas da MPB: Tempo Rei, Gilberto Gil

Não me iludo Tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo, transformando Tempo e espaço navegando todos os sentidos Pães de Açúcar, Corcovados Fustigados pela chuva e pelo eterno vento Água mole, pedra dura Tanto bate que não restará nem pensamento Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei Pensamento Mesmo o fundamento singular do ser humano De um momento para o outro Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos Mães zelosas, pais corujas Vejam como as águas de repente ficam sujas Não se iludam, não me iludo Tudo agora mesmo pode estar por um segundo Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei CD: Raça Humana - 1984 Caricatura de Genildo       Retom

Católico Apostólico Piauiense, Carlos Castelo

Fui uma criança educada sob o catolicismo apostólico piauiense. O cristianismo do Meio Norte difere do romano apenas em um aspecto: o fervor.  O que é coerente com a temperatura média do estado, sempre beirando os 40 graus. A grande mentora da minha espiritualidade foi a avó materna. Dona Alzira, pelas minhas contas, só perdeu em número de leituras da Bíblia para Johannes Gutenberg – pai do famoso Livro Sagrado produzido em tipos móveis. Fora a sua exegese bíblica, ainda havia os terços diários, os rosários apressados e os jejuns. Minha mãe reproduzia, de modo mais suave, as práticas místicas. Era devota de Santa Teresinha do Menino Jesus. E, como boa meio-nortista, com grande fervor. Nosso pastor alemão, para que o leitor tenha ideia, se chamava Tom: era xará do cachorro de Teresa de Lisieux. Era natural que eu tivesse influências das duas. Até os 11 anos, quando me perguntavam o que queria ser quando crescer, respondia, sem titubear: “papa”. Quando estava com 16 anos, em pleno Milag

Valsa Dos Cogumelos, Rogério Medeiros.

      Pois é, eu escrevi um livro. Comecei muitos anos atrás, como projeto de conclusão de jornalismo, mas na época não achei que ele estivesse completo o bastante para ser publicado. Dois anos atrás, no meio do lockdown, resolvi retomar as pesquisas, e agora, 22 meses depois, estou colocando ele no mundo. Quer dizer, quase. Hoje, comecei uma campanha de financiamento coletivo para viabilizar a publicação do livro. É tipo uma vaquinha virtual, em que criadores mostram sua ideia num site e pessoas interessadas financiam o projeto em troca de uma recompensa que chega um tempo depois. No meu caso, a recompensa se chama Valsa dos Cogumelos – A Psicodelia Recifense 1968/1981, onde conto a história de uma turma de malucos cabeludos que fez música experimental aqui no Recife. Foram grupos como Laboratório de Sons Estranhos, Nuvem 33, Aratanha Azul, Phetus e Ave Sangria, e compositores e cantores como Flaviola, Lula Côrtes, Marconi Notaro, Ricardo Uchôa, Robertinho de Recife, Alceu Valença, Ge

Uma Lição Para Aprender e Refletir, Rubem Alves

O Luiz O Luiz Fernando Veríssimo escreveu uma crônica hilariante sobre a Páscoa. Foi um diálogo absurdo entre um menino, seu pai e sua mãe, sobre o sentido dessa festa. A crônica termina com uma observação justíssima do menino. Disse ele: “Eu acho que ao invés de “coelho da Páscoa” deveria ser “galinha da Páscoa…” Pois é claro. Todo mundo sabe que coelhos não botam ovos. E todos sabem que galinhas botam ovos… Confesso minha ignorância: não sei como é que o coelho entrou nessa estória. Para início de conversa é preciso lembrar que os textos sagrados não fazem referência alguma a esse animalzinho fofo. Quem foi que teve a ideia de torná-lo o personagem mais importante dessa celebração cristã? Certamente um gozador. E para tornar a estória mais absurda, fizeram com que os coelhos, que não botam ovos, botassem ovos de chocolate… Nos tempos de Jesus Cristo havia chocolate? Acho que não. Galinhas não são seres poéticos. Na poesia elas sempre aparecem como bichos engraçados, cacarejantes, de

A Mendiga e o Samurai

     Conta-se que um bravo samurai viveu na ilha de Hokaido, no norte do Japão. Ele era um senhor feudal  que possuía grandes áreas de terra, tendo, assim, muitos súditos. Tudo adquiriu após diversas batalhas, no comandando as tropas do Imperador.      Certa feita, após uma guerra, voltou para a sua terra natal e decidiu que iria casar-se. Tratava-se de um homem forte e belo e, quando a notícia de que o Samurai desejava casar-se se espalhou, por toda a ilha as mulheres ansiavam por desposá-lo. As mulheres mais bonitas da ilha e de outras ilhas mais distantes o visitavam em seu palácio, sendo que muitas delas lhe ofereceram, além de sua beleza e encantos, muitas riquezas. Nenhuma, contudo,  o satisfez o suficiente para se tornar sua esposa. Um dia, uma jovem maltrapilha e simples  chegou ao palácio do samurai e, com muita luta, conseguiu uma audiência: “Eu não tenho nada material para lhe oferecer, só posso lhe dar o grande amor que sinto por você”. Como prova, complementou: “Se você me

Pátria Minha, Vinicius de Moraes

A minha pátria é como se não fosse, é íntima Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo É minha pátria. Por isso, no exílio Assistindo dormir meu filho Choro de saudades de minha pátria. Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi: Não sei. De fato, não sei Como, por que e quando a minha pátria Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água Que elaboram e liquefazem a minha mágoa Em longas lágrimas amargas. Vontade de beijar os olhos de minha pátria De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos... Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias De minha pátria, de minha pátria sem sapatos E sem meias, pátria minha Tão pobrinha! Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho Pátria, eu semente que nasci do vento Eu que não vou e não venho, eu que permaneço Em contato com a dor do tempo, eu elemento De ligação entre a ação e o pensamento Eu fio invisível no espaço de todo adeus Eu, o sem Deus! Tenho-te no entanto em mim como um gemido De flor; tenho-te como