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Mostrando postagens com o rótulo Antonio Prata

100% Classe Média, crônica de Antonio Prata

     "Nós somos ricos?" perguntei à minha mãe, aos cinco anos. Eu achava que sim. Afinal, para mim, os pobres eram aquelas pessoas  que eu via com prematura angústia, através do vidro de nosso Passat verde-musgo, na pequena favela Juscelino Kubitschek, perto de casa. Minha mãe disse que não éramos ricos nem pobres, éramos de classe média.      Achei o termo meio nebuloso e confesso que só fui entendê-lo realmente, em suas profundas implicações socioexonômicas-culturais, na última terça, durante o banho, quando o vizinho de cima deu a descarga e a água do meu chuveiro pelou. Eu gritei um palavrão, abri mais a torneira e, quando minhas costas voltavam a uma temperatura suprtável, pensei:ah, então é isso.      Ser de classe média significa ter uma proximidade compulsória com os outros e, consequentmente, estar em constante negociação com o mundo. Afiinal, você não está entre a minoria que dita as regras, nem junto à massa que apenas as segu...

Eva Tinha Celulite? crônica de Antonio Prata

     Quando Deus criou Adão e Eva, os fez meio tapados. Colocou os dois peladões naquele enorme jardim e disse: "Ó, fiquem aí, numa boa. Podem comer todos os frutos, nadar nos rios, fazer o que der na telha, menos uma coisa: comer do fruto daquela árvore ali". Se eles comessem o tal fruto, perderiam a inocência e descobririam outras atividades interessantes para se fazer pelados, além de comer pitangas e tomar banhos de cachoeira.      Como se sabe, a cobra ofereceu a fruta a Eva, que a mordeu e deu para Adão ( a fruta, que fique bem clato). Assim que os dois comeram, perceberam que estavam nus e se envergonharam. Cobriram-se com folhas de parreira e uma semana depois, em todas as bancas do Jardim do Éden, podia-se ler na capa de primeira revista feminina da história: "10 maneiras hipertransadas de usar folhas de parreira para arrasar nesse verão!" ( se você achou "hipertransadas"e "arrasar" meio ridículo, lembre-se de que a edição e de milhões d...

Mais Acessadas No Blog em 2023

Um conto de Carlos Drummond de Andrade, um poema de Bruno Estrela e uma crônica de Antônio Prata foram as postagens mais acessadas em 2023.    A Beleza Total de Drummond está no livro Contos Plausíveis e foi postada aqui em 2017.   Fala de Gertrudes, a bela desde sempre, e termina assim:   "Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou pairando, imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves."  Mãe É Quem Fica de Bruna Estrela Esse texto poético foi postado em 2019.  Precisei falar com Bruna Estrela para confirmar a autoria, porque  encontrei-o atribuido a Cora Coralina e a Cecília Meireles e no blog, por dois anos seguidos, recebi co...

= S D Comunikssaum, Antonio Prata

  A 1a  vz q abri mail e dei de kra c/uma msgm acim, naum entendi nd. Pensei q era pau do outlook, pblma do cputador. Naum, nd diço: era soh + uma leitora que flava eça stranha lihngua da internet. Como a cada dia que paça, rcbo+ msgs nece dialeto sqzito, percbi q, ou aprendia eu tb a tklar acim, ou fikava ptrahs. Na natureza nd c perde, nd c cria, td c transforma: tinha xgado a hr de eu tb me transformar. Minha 1a  atitud foi tklar para Ehrika, uma garota que screv neça lihngua, e prgntar como eu fazia p aprendr. Ela flou sgte: " tipo... eh soh tocar CH por X, Ç por SS, H em vez de acento (é/eh; só/soh) e comer o max d letras pocihvel. Entendeu?" O q naum entendo eh pq tnta complicação. Era taum fahcil scrver o bom e velho port...  Pgntei p Joaum, 1 primo meu q screv  ateh poemas dece jto: pq as pçoas estaum screvndo acim? Ele me garantiu q era pq era + fahcil. Serah? Olha soh, Joaum, Ehrika e td mdo: p tklar naum uso 4 tklas. Para tklar não, tb uso soh 4. Eh=...

Adulterado, Antonio Prata

     Oi. Meu nome é Antonio Prata, tenho 23 anos e algo estranhíssimo aconteceu comigo: me transformei num adulto. Deve ter sido na calada da noite, enquanto eu dormia, pois confesso que não percebi nada.  É normal, talvez diga a leitora, sem entender o meu susto: é porque não aconteceu com você - ainda.      Foi num forró, em São Paulo, que me dei conta do ocorrido. Entrei, olhei a pista e percebi que o público, antes da minha idade, estava mais jovem. Como sei que que é impossível rejuvenesce e era muito pouco provável  que aquelas quase duzentas pessoas houvessem feito cirurgias plásticas só para me enganar, havia apenas uma explicação: eu é que estava mais velho. E se eu não era mais um adolescente como eles eu só poderia ser ... um adulto! Tomei um susto.      Dias depois, outra situação me mostrou que já não era mais o mesmo. Encontrei num bar o cara que foi meu coordenador pedagógico durante o colegial. O carrasco que  m...

Parada, Antonio Prata

     Olha lá a tia Olga e o Zequinha. A mãe falou que a tia Olga disse que o Zequinha tá indo mal na escola por causa da maconha que ela achou no bolso da calça que ele esqueceu e mandou lavar, mas eu acho que é besteira da tia Olga. O Zezinho sempre foi mal na escola porque ele é muito burro. Nossa, o Zequinha é muito burro. Ihhh, já desconcentrei de novo! Mas também tudo bem porque a gente não tá nem na avenida central ainda. Se bem que o seu Orestes falou que não importa que eu toque só no final, que nós somos uma banda e todo mundo tem que estar o tempo todo atento e não só na sua parte. Mas eu só preciso prestar atenção mesmo quando cantarem "e o sol, poente no horizonte". Quando falar "e o sol,/ poente no horizonte", o Pedrão faz o pam-pam-pam/pam/pam, na tuba e eu lá: plá!, mando ver nos pratos! Beleza. Ontem na casa de Pedrão, a gente treinou a tarde inteira e dava certo. A irmã dele cantava "e o sol, poente no horizonte", ele mandava o pam-pam-pam...

Loja de Colchões, Antonio Prata

      A loja de artigos esportivos tem as paredes forradas por fotos de jovens correndo, escalando montanhas, remando canoas. O supermercado exibe cartazes com casais brindando, crianças babando sorvete, velhinhos comendo mamão. A confecção da esquina expõe as roupas na vitrine em manequins, como se fossem uma turma de amigos a contemplar a paisagem. Todo o comércio se esmera em criar um climinha em torno do produto, em imitar os ambientes e situações em que ele será usado: só as lojas de colchão é que não. Nesses cubos brancos, banhados de luz fria, os colchões são expostos nus, sem direito sequer a lençol, sobre camas em que ninguém dormiu nem dormirá - e isso me deixa triste como o diabo.      É o colchão, não o cachorro, o melhor amigo do homem. Do colchão viemos, ao colchão voltaremos, se não na última de nossas noites, aquela que não verá aurora, ai menos ao fim de cada dia, quando esgotados pela vigília e purificados pelo banho, sonhamos com mulhere...

Mulher Pelada, Antonio Prata

    Toda sexta-feira, lá pelas seis e meia da tarde, meu pai aparecia para nos buscar. Assim que dobrava a esquina, dava duas buzinadas curtas: era o sinal para que pegássemos nossas mochilas e corrêssemos para a rua.      Geralmente íamos a algum restaurante ou bar, onde ele encontrava os amigos e a namorada e nos esbaldávamos misturando Coca-Cola com Sukita, comendo frango à passarinho com batata-frita e mandando pra cucuia, em meia hora, toda a harmonia nutricional que minha mãe havia conquistado, duras penas, ao longo da semana.      Nas épocas em que meu pai tinha alguma peça em cartaz, costumávamos passar pelo teatro antes e depois do bar, para que ele checasse a bilheteria, conversasse com os atores, visse o público entrando, ou, caso o espetáculo já tivesse começado, aferisse o êxito da noite pelo número de pipoqueiros na calçada.     Quando eu tinha uns cinco anos, estreou Besame mucho no Cultura Artística. foi o maior sucesso ...

Meias, Antonio Prata

       A gente sempre pensa que a mudança virá de grandes resoluções: parar de fumar, pedir demissão, declarar-se à Regininha do comercial. Às vezes, contudo, são as pequenas atitudes que alteram definitivamente o rumo de nossa vida. Ontem, por exemplo, pela primeira vez desde que me conheço por gente, saí pra comprar meias. Sou um novo homem.      O leitor pode achar que estou exagerando. É que não teve o desprazer de conhecer a minha gaveta de meias até vinte e quatro horas atrás. Mais parecia um saloon de Velho Oeste: poucos pares estropiados em meio a pés desconjuntados – tenazes sobreviventes de diferentes etapas de minha vida.      As três brancas, de algodão, haviam sido ganhas na compra de um tênis de corrida, lá por 98. A marca da loja, escrita no elástico esgarçado, já quase não se lia. Pior que as brancas   estavam as azuis, da Varig, do tempo em que a ponte aérea   era feita pelos Electras e as ...

A Fuga do Cativeiro Egípcio, Antonio Prata

"Pequeno pânico" talvez soe incongruente, algo como "gigantinho" ou "minifuracão", mas foi exatamente o que senti ao vê-lo próximo à esteira de bagabens, acenando. Não, não somos inimigos, longe disso. Namoramos duas primas, lá por 96 dividimos a mesa em Pessachs, Rosh Hashanahs e Yom Kippurs, na casa da avó delas. Os dois góis - ele cristão e estudante de engenharia, eu ateu e aspirante a escritor - procurávamos terrenos comuns pra escorr nosso deslocamento: eu  lhe narrava a ideia de um conto, ele dissertava sobre as maravilhas de concreto armado e, assim, ficava mais fácil equilibrar as adolescências sob aqueles quipás.  Dezoito anos e onze horas de viagem depois, contudo, às seis da manhã...      Fui empurrando o carrinho e arrastando meu pânico, pensando que seria tão mais simples se, num acordo de cavalheiros, nos ignorássemos mutuamente. Bastava monitorar o posicionamento do outro com a visão periférica e ficar de lado ou de costas, conforme a s...

Felicidade, sim. Antonio Prata

           Vivi por trinta e quatro anos sob o jugo de chuveiro elétrico. Ah, lastimável invento! Já gastei mais de uma crônica amaldiçoando seus fabricantes; homens maus, que ganham a vida propagando a falácia de temperatura com pressão, quando bem sabemos que, na gelida realidade dos azulejos, ou a água sai abundante e fria ou é um fiozinho minguado e escaldante sob o qual nos envolhemos, o cucuruto  no Saara e os pés na Patagônia, sonhando com o dia em que, libertos das inúteis correntes ( de elétrons), alcançaremos a terra prometida do aquecimento central.      Reclamo de barriga cheia? Sem dúvida. Há problemas bem mais sérios neste mundo, mas sejamos honestos: a morte do vizinho não anula minha dor de dente - e um banho ruim é dez vezes mais triste que uma dor de dente.  Afinal, um molar, quando para de doer, não é capaz por si só de nos dar alegria. Já o banho, quando é bom... Que contentamento uterino é ter a pele envo...