Toda sexta-feira, lá pelas seis e meia da tarde, meu pai aparecia para nos buscar. Assim que dobrava
Geralmente íamos a algum restaurante ou bar, onde ele encontrava os amigos e a namorada e nos esbaldávamos misturando Coca-Cola com Sukita, comendo frango à passarinho com batata-frita e mandando pra cucuia, em meia hora, toda a harmonia nutricional que minha mãe havia conquistado, duras penas, ao longo da semana.
Nas épocas em que meu pai tinha alguma peça em cartaz, costumávamos passar pelo teatro antes e depois do bar, para que ele checasse a bilheteria, conversasse com os atores, visse o público entrando, ou, caso o espetáculo já tivesse começado, aferisse o êxito da noite pelo número de pipoqueiros na calçada.
Quando eu tinha uns cinco anos, estreou Besame mucho no Cultura Artística. foi o maior sucesso do meu pai - coisa para três, quatro pipoqueiros -, mas eu não o considerava um homem realizado: muito pelo contrário. É que, aos olhos de uma criança, aquele teatro, embora um marco arquitetônico paulistano, era incapaz de competir com a exuberância kitsch das casas de strip adjacentes. Que apelo tinha um painel de pastilhas de Di Cavalcanti diante dos neons em forma de dançarinas de cancã, levantando e abaixando as pernas, bocas abrindo e fechando, luas cheias, crescentes e minguantes, cometas espichando as caudas, estrelas acendendo e apagando? O que podia o projeto modernista de Rino Levi entre fachadas imitando castelo medieval, gruta rochosa me chalé alpino, com portas espelhadas, douradas, prateadas, forradas com couro preto, branco ou vermelho? por aquelas portas pude ver de relance, uma ou duas prateleiras repletas de garrafas coloridas e, assim, confirmar minha suspeita de que o teatro do meu pai era o estabelecimento mais desanimado da região.
Eu morria de vontade de saber mais sobre aquela Disneylândia noturna, mas não abria a boca, com receio de magoar meu pai lembrando-lhe da simplicidade de seu teatro. Uma noite, contudo, ao sairmos do Cultura Artística, com o nariz colado no vidro de trás do carro e os olhos hipnotizados pelos neons, a curiosidade venceu o pudor e perguntei: por que aqueles teatros eram tão mais incrementados que o dele? Por que o dele, mesmo fazendo tanto sucesso, não investia em luzes e decoração, adequando-se ao nível da vizinhança? Sem aparentar nenhum ressentimento , meu pai explicou que as casas por trás dos luminosos não eram teatros, mas bares. Estranho. Eu conhecia muitos barres; o que tornava aqueles tão diferentes dos outros, em que comíamos frango à passarinho com batatas fritas e misturávamos Coca-Cola com Sukita? Com a maior naturalidade, meu pai respondeu "mulheres peladas".
fiquei bastante intrigado. Do alto de minha meia década de existência, "mulher pelada" não evocava nada além da imagem de minha mãe entrando ou saindo do banho , de touca na cabeça e toalha na mão, cheiro de xampu no ar, gotículas de vapor nos azulejos. Bem, talvez a fumaça vista pelas portas entreabertas fosse vapor dos chuveiros em que as tais mulheres se banhavam, mas algumas questões maiores permaneciam sem resposta: o que levaria as mulheres a tomar banho num bar? Por que permaneciam peladas depois da ducha? Qual seria a graça de comer frango à passarinho com a bunda de fora?
A explicação do meu pai só aumentou minha confusão: as mulheres peladas estavam lá porque homens que não tinham namorada apareciam especialmente para vê-las. De novo, impossível ligar causa e efeito: por que um homem sem namorada ia querer ver uma mulher pelada? Ainda mais num bar?
Enquanto rumávamos para o restaurante, subindo a Consolação, fiquei imaginando os tais sujeitos solitários, com cabelos desgrenhados e barbas por fazer, a bebericar tristemente seus chopes enquanto mães nuas iam e vinham com toalhas enroladas na cabeça, parando eventualmente entre as mesas para, apoiando o pé no assento de uma cadeira, passar cera depilatória.
Incapaz de visualizar tamanho despautério, pedi a meu pai que nos levasse a um bar de mulher pelada na próxima sexta. Não dava, ele disse, eram proibidos para crianças. Então, pela primeira vez naquela noite, alguma lógica apareceu: a proibição deveria ser para evitar que víssemos os tais homens sem namorada, sofrendo em meio ao vapor, aos neons e às toucas de banho. Aceitei a situação com certo alívio, até: o teatro do meu pai não era, afinal de contas, o estabelecimento mais triste da região.
Só quase vinte anos mais tarde atravessei uma daquelas portas espelhadas: as mulheres eram diferentes do que eu havia imaginado, mas os homens estavam lá, bem como eu os havia pintado.
Nu, de botas, Antonio Prata, Cia. das Letras,2013, págs.64-67
Imagem: painel do Teatro Cultura Artística. Di Cavalcanti.
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Delicioso !!
ResponderExcluirAssisti essa peça Besame Mucho, no teatro Cultura Artística. O ator principal, Norival Rizzo, foi meu colega no colegial. Fomos, eu e outra amiga, falar com ele ao fim da peça e foi uma alegria nosso reencontro. 🥰
Assinado: Marilda Romani
Sim
ResponderExcluirMulher pel4d4 que conteúdo picante
ResponderExcluirameiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! que pena que ele morreu
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