Pular para o conteúdo principal

A Fuga do Cativeiro Egípcio, Antonio Prata

"Pequeno pânico" talvez soe incongruente, algo como "gigantinho" ou "minifuracão", mas foi exatamente o que senti ao vê-lo próximo à esteira de bagabens, acenando. Não, não somos inimigos, longe disso. Namoramos duas primas, lá por 96 dividimos a mesa em Pessachs, Rosh Hashanahs e Yom Kippurs, na casa da avó delas. Os dois góis - ele cristão e estudante de engenharia, eu ateu e aspirante a escritor - procurávamos terrenos comuns pra escorr nosso deslocamento: eu  lhe narrava a ideia de um conto, ele dissertava sobre as maravilhas de concreto armado e, assim, ficava mais fácil equilibrar as adolescências sob aqueles quipás.  Dezoito anos e onze horas de viagem depois, contudo, às seis da manhã...
     Fui empurrando o carrinho e arrastando meu pânico, pensando que seria tão mais simples se, num acordo de cavalheiros, nos ignorássemos mutuamente. Bastava monitorar o posicionamento do outro com a visão periférica e ficar de lado ou de costas, conforme a situação. Já não namoravamos  as primas, não nos sentíamos perdidos entre contraparentes e rituais milenares, éramos apenas dois homens cansados, querendo ir logo pra casa. Agora, pporém, era tarde: ele havia feito contato visual e estávamos irremediavelmente atados até que chegassem as malas, condenados a uma escavação arqueológica em busca de  gefilte fishes , vergalhões enferrujados e contos nunca terminados. 
     Eu dei oi, apertamos as mãos. A conversa começou protocolar, "Poxa, quanto tempo", "Quinze anos? Mais?!?, "Tá vindo de onde?". Aos poucos, contudo, o papo engrenou: mesmo cansado, às seis da manhã, ele investia alguma energia pra que a coisa fluisse - energia que, momentos antes, eu preferia gastar metendo o nariz no iPhone. Das viagens fomos pras primas (uma casou com um belga, a outra faz massagem ayurvédica),  das primas pros jantares, dos jantares pra profissões. Eu falei do meu último livro, perguntei o que ele fazia, me contou que "desentortava prédios". Eu ri, curioso, ele disse que era sério, esses prédios afundam, tombam um pouco pro lado, como os de Santos, é mais comum do que se imagina. Então, enquanto à nossa volta olhos sonados amaldiçoavam as malas alheias, deslizando como leões-marinhos pela esteira, eu ouvi atento o relato sobre tal milagre da engenharia: cavam um buraco embaixo do prédio, constroem uma espécie de piscina, enchem de água e congelam com nitogênio. "A água, como você sabe, se expande ao congelar - eu não sabia- , "o gelo empurra o prédio para cima, aí é só escorar com uns pilares.
     Quando nos despedimos, o pequeno pânico havia dado lugar a uma pequena culpa e a uma sincera admiração. Ali estava um sujeito generoso, não um sujeito que via o mundo sob a ótica do cálculo e do interesse. Ora, se na década de 90 havíamos concluido a fuga do Egito, mais de uma vez, tranquilos, o mínimo que deveríamos fazer ao nos encontrarmos no aeroporto, no mercado ou no Azerbaijão era apertar as mãos e investir algum esforço pra sermos agradáveis. Me senti uma besta. Paciência: uns nascem pra reerguer edifícios, outros pra embrulhar o remorso numa folha de jornal.

Antonio Prata, Trinta e Poucos,Cia das Letras, São Paulo 2016, págs.139-140

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.