"Pequeno pânico" talvez soe incongruente, algo como "gigantinho" ou "minifuracão", mas foi exatamente o que senti ao vê-lo próximo à esteira de bagabens, acenando. Não, não somos inimigos, longe disso. Namoramos duas primas, lá por 96 dividimos a mesa em Pessachs, Rosh Hashanahs e Yom Kippurs, na casa da avó delas. Os dois góis - ele cristão e estudante de engenharia, eu ateu e aspirante a escritor - procurávamos terrenos comuns pra escorr nosso deslocamento: eu lhe narrava a ideia de um conto, ele dissertava sobre as maravilhas de concreto armado e, assim, ficava mais fácil equilibrar as adolescências sob aqueles quipás. Dezoito anos e onze horas de viagem depois, contudo, às seis da manhã...
Fui empurrando o carrinho e arrastando meu pânico, pensando que seria tão mais simples se, num acordo de cavalheiros, nos ignorássemos mutuamente. Bastava monitorar o posicionamento do outro com a visão periférica e ficar de lado ou de costas, conforme a situação. Já não namoravamos as primas, não nos sentíamos perdidos entre contraparentes e rituais milenares, éramos apenas dois homens cansados, querendo ir logo pra casa. Agora, pporém, era tarde: ele havia feito contato visual e estávamos irremediavelmente atados até que chegassem as malas, condenados a uma escavação arqueológica em busca de gefilte fishes , vergalhões enferrujados e contos nunca terminados.
Eu dei oi, apertamos as mãos. A conversa começou protocolar, "Poxa, quanto tempo", "Quinze anos? Mais?!?, "Tá vindo de onde?". Aos poucos, contudo, o papo engrenou: mesmo cansado, às seis da manhã, ele investia alguma energia pra que a coisa fluisse - energia que, momentos antes, eu preferia gastar metendo o nariz no iPhone. Das viagens fomos pras primas (uma casou com um belga, a outra faz massagem ayurvédica), das primas pros jantares, dos jantares pra profissões. Eu falei do meu último livro, perguntei o que ele fazia, me contou que "desentortava prédios". Eu ri, curioso, ele disse que era sério, esses prédios afundam, tombam um pouco pro lado, como os de Santos, é mais comum do que se imagina. Então, enquanto à nossa volta olhos sonados amaldiçoavam as malas alheias, deslizando como leões-marinhos pela esteira, eu ouvi atento o relato sobre tal milagre da engenharia: cavam um buraco embaixo do prédio, constroem uma espécie de piscina, enchem de água e congelam com nitogênio. "A água, como você sabe, se expande ao congelar - eu não sabia- , "o gelo empurra o prédio para cima, aí é só escorar com uns pilares.
Quando nos despedimos, o pequeno pânico havia dado lugar a uma pequena culpa e a uma sincera admiração. Ali estava um sujeito generoso, não um sujeito que via o mundo sob a ótica do cálculo e do interesse. Ora, se na década de 90 havíamos concluido a fuga do Egito, mais de uma vez, tranquilos, o mínimo que deveríamos fazer ao nos encontrarmos no aeroporto, no mercado ou no Azerbaijão era apertar as mãos e investir algum esforço pra sermos agradáveis. Me senti uma besta. Paciência: uns nascem pra reerguer edifícios, outros pra embrulhar o remorso numa folha de jornal.
Antonio Prata, Trinta e Poucos,Cia das Letras, São Paulo 2016, págs.139-140
Imagem: Revista Super Interessante.
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