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Por que o Sol Anda Devagar? Daniel Munduruku

     Contam os velhos sábios Karajá, que no início dos tempos a terra era um lugar muito escuro, muito frio. Isso acontecia porque não havia sol, lua ou estrelas para trazer claridade. Por causa disso, os Karajá precisavam manter um pequeno braseiro aceso dentro de casa. Mas isso era muito trabalhoso, pois exigia que os homens saíssem para a mata atrás de lenha. Como tudo era escuro e frio, ninguém queria ir até lá. Aliado à preguiça que sentiam, havia também o fato de sentirem muito medo de permanecerem fora de sua hetó, pois os perigos eram muitos e grandes.

     Nesta época, dizem os velhos, a preguiça tomava conta de todo mundo, mesmo de um grande herói do povo Karajá.  Este herói, de nome Cananxiuê, morava na casa do pai de sua esposa, como é o costume desse povo. Por isso, sempre ouvia o velho lhe dizer:

     - Oh, meu genro! Você precisa arranjar luz para todos nós. Você é um herói e como herói tem que resolver esse problema que fará muito bem para os Karajá.

     - Tá bem meu sobro, um dia eu vou!

     Mas o herói não queria saber de levantar da sua rede. Como todos os homens do lugar, preferia ficar ali a enfrentar a noite escura e fria da mata. Nem lenha ele queria buscar, deixando a tarefa para sua esposa.

     Um dia, o velho sogro, já enfezado com Cananxiué, foi ele mesmo buscar lenha na mata. Como já estava com idade avançada e não podendo mais enxergar direito, acabou caindo e se machucando todo. Lá do mato, socorrido por outras pessoas, o homem velho berrou com o genro:

     - Ô Cananxiuê, já não aguento mais essa vida. Você tem de dar um jeito nisso! Ao menos venha buscar lenha para manter o fogo aceso.

     Não adiantou nada. O herói preguiçoso continuou deitado cheio de indisposição para sair e resolver o problema. 

     Foi, então, que os animais     se uniram ao sogro e passaram a dizer ao jovem herói:

     - Cananxiuê parece mulher. Fica o dia todo deitado na rede sem fazer nada. Vai buscar luz para nós, homem. Cumpra sua obrigação de herói.

     Sua mulher entrou  no coro dos descontentes e começou a cobrar-lhe também:

     - Cananxiuê, você é meu marido. Você tem de cuidar de mim. Vá cumprir a promessa que fez a meu pai de trazer luz e calor para os Karajá.

     Irritado com tanta gente pegando no seu pé, Cananxiuê decidiu sair pelo mundo à procura da luz do sol. Como estava irritado, decidiu que iria sozinho w nada levaria consigo.

     Vendo que o herói nada levava, todo mundo na aldeia ficou desconfiado.  Todos achavam que, andando desse jeito, sem levar arma alguma, aquele moço não conseguiria trazer o sol consigo.

     Até os animais da floresta começaram a dizer a Cananxiuê: - Como um homem sozinho pode vencer Theuú e trazê-lo para nós? O sol é grande e forte e mãos vazias não irão aguentá-lo.

     -Randô é esperta e cheia de fases. Como poderá vencê-la?

     - Tahiná é valente e ligeira. Ela pisca e se esconde. Como irá encontrá-la?

     - Sem arco e flecha, sem lança ou btacape, sem corda ou laçi ele não vencerá nem um punhado de moscas. Como poderá vencer o sol, a lua e as estrelas?

     Cananxiuê nada respondia. Continuava quieto, apenas fazendo planos em seu pensamento:

     "Se não posso flechar o sol, laçar a lua, amarrar as estrela, para que usar armas? A minha arma tem que ser a esperteza".

     E assim continuou sua jornada por um longo tempo, perguntando para todos que encontrava qual seria o paradeiro do sol, da lua e das estrelas. Ninguém sabia direito e davam informações muito diferentes.  Até que um dia encontrou alguém que sabia onde eles viviam.

     - O sol, a lua e as estrelas estão lá em cima. Eles são muito bem guardados pelo ranranresá, o urubu- rei.

     - Então, se é o urubu-rei que é dono do sol, da lua e das estrelas, é ele que tenho de vencer!

     E assim foi, dizem os velhos Karajá.

     Cananxiuê bolou um plano para vencer rararesá. Ao chegar a um lugar bonito, onde havia uma praia de rio, lugar largo e que permitia um fuga, resolveu que ali seria o espaço ideal para travar sua batalha com o urubu-rei.

     Ele deitou-se no chão e avisou a todos os animais que o seguiam:

     - Morri!

     Para testar se ele estava morto, as moscas vieram e andaram por cima do corpo estendido no chão. Fizeram barulho perto do ouvido do herói morto e não conseguiram que ele movesse um único músculo. Disseram então:

     - Ele está morto. Ele morreu mesmo.

     Em seguida veio um grupo de urubus e voaram em círculo sobre o cadáver. Desconfiados, não quiseram arriscar descer onde ele estava. Tempos depois, alguns vieram e bicaram a barriga de Cananxiuê, mas ele não se mexeu. Então disseram entre si:

     - Está morto mesmo. Podemos avisar o rei.

     Ranranresá sobrevoou o herói. Estava desconfiado, mas, acreditando nas palavras de seus conselheiros, pousou bem no peito do cadáver que, rapido como um raio, agarrou as pernas do rurubu-re e tornou-o prisioneiro.

     Ao notar que o herói havia conseguido aprisionar o dono do sol, os animais começaram a caçoar do pássaro:

     - Este urubu não é de nada. Deixou-se aprisionar de forma tão infantil.

      Não pode ser rei alguém que se deixa prender por um Karajá!

     Como pode ser dono do sol, da lua e das estrelas, alguém tão fácil de agarrar.

     Os animais sabiam que agindo daquela forma iriam provocar a ira do urubu-rei e que acabariam conseguindo dele o que queriam.

     Passado algum tempo, e já não mais aguentando tamanha gozação, ranranresá chamou Cananxiuê e lhe propôs satisfazer qualquer vontade do moço por sua liberdade.

     - Liberte-me e eu lhe darei o que pedir.

     - Dará-me qualquer coisa?

     - Tudo o que você quiser, desde que me liberte.

     -Você me dá sua palavra de urubu-rei?

     - Dou minha palavra.

     O herói libertou o urubu-re que imediatamente tomou o rumo do céu. aliviado por estar livre das correntes, a ave voltou ao jovem:

     - O que você quer em troca de minha liberdade?

     - Quero a luz das estrelas!

     - Urubu sumiu. Voltou em seguida trazendo apenas a luz das estrelas consigo. Isto, no entanto, não agradou a todos. Diziam que era uma luz muito fraca e de nada servia.

     - Quero que nos traga a luz da lua!

     O urubu-rei partiu e regressou trazendo apenas a luz da lua. Era uma luz fria, sem vida e todos reclamaram novamente.

     - Quero Theuú, o sol. Somente ele tem a luz e o calor de que os Karajá precisam.

     Urubu-rei voltou com o sol. O sol chegou forte, brilhante e quase queimou tudo onde passava. Mas como urubu-rei estava muito chateado com os Karajá, pediu ao sol que andasse rápido, tão rápido que nem desse tempo das pessoas aproveitarem dele. E assim aconteceu. E mais uma vez todos se chatearam indo reclamar com Cananxiuê.

     O herói falou ao raranresá para que pedisse ao solque andasse mais lentamente para que os Karajá pidessem aproveitá-lo melhor. Acontece que a ave já estava tão chateada que disse que iria embora e que o próprio herói falasse com o sol.

     Mas como isso era possível, se o sol sempre passava em grande velocidade?

     A aldeia foi para cima do herói reclamando da velocidade do sol. Para que serviria um sol que caminha  tão rápido?

     Cananxiuê foi, então, para o topo de uma grande palmeira. Ficou ali aguardando. Quando o sol foi se aproximando da árvore, o herói saltou sobre ele e agarrou sua cabeleira. Como estivesse muito quente, escorregou e foi parar no seu pescoço; como ainda estivesse muito quente, escorregou  e foi parar em sua barriga; ali também estava quente e acabou escorregando para a cintura; também ali o calor era insuportável, até se agarrou na barriga da batata da perna do sol. Ali ficou firme e não largou.

     A firmeza com que segurou o sol era tanta, que isso obrigou Theuú a diminuir a velocidade de sua passagem sobre a terra permitindo que os Karajá realizem todos os seus afazeres: caçar, pescar, coletar frutos, trançar suas redes, comer...Sem necessidade de corrercom medo de o dia acabar logo.

     E quando o sol vai embora e a humanidade fica entregue à noite, os Karajá têm a alegria de contar com a luz de Randô, que os alimenta com seu brilho.  E mesmo nas noites mais escuras, todos podem contar com as piscadelas de Tahiná para lembrá-los que o dia nascerá de novo, graças ao herói Cananaxiuê que continua agarrado na batata da perna do sol.

     Este é um mito do povo Karajá, que habita o estado do Tocantins e pertence à família linguística do grande tronco Macro-jê e incorpora outros grupos indígens como os Javaé e os Xambioá.

De: Um Fio de Prosa, div. autores, Ed. Global, São Paulo 2004 (Antologia de Contos e Crônicas para jovens) Págs.83-91

Imagem: Rogério Borges

     

    

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