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Meias, Antonio Prata

 

     A gente sempre pensa que a mudança virá de grandes resoluções: parar de fumar, pedir demissão,
declarar-se à Regininha do comercial. Às vezes, contudo, são as pequenas atitudes que alteram definitivamente o rumo de nossa vida. Ontem, por exemplo, pela primeira vez desde que me conheço por gente, saí pra comprar meias. Sou um novo homem.

     O leitor pode achar que estou exagerando. É que não teve o desprazer de conhecer a minha gaveta de meias até vinte e quatro horas atrás. Mais parecia um saloon de Velho Oeste: poucos pares estropiados em meio a pés desconjuntados – tenazes sobreviventes de diferentes etapas de minha vida.

     As três brancas, de algodão, haviam sido ganhas na compra de um tênis de corrida, lá por 98. A marca da loja, escrita no elástico esgarçado, já quase não se lia. Pior que as brancas  estavam as azuis, da Varig, do tempo em que a ponte aérea  era feita pelos Electras e as aeromoças davam brindes, não broncas.  Os pés da meia azul não tinham curva no calcanhar nem na canela: assemelhava-se a coadores de café dos Smurfs. O elástico frouxo, mas o laço afetivo não, de modo que eu as seguia usando, ano após ano, mesmo diante dos encarecidos apelos da minha mulher.  Em bom estado mesmo só as cinza, com losangos vinho, que peguei pra completar o valor na troca de uma jaqueta, presente de Natal em, sei lá, 2002. Era a minha “meia de sábado” aquela que vestia para jantares, casamento e entrevistas de emprego. Além dessas havia mais três ou quatro, que de tão ordinárias nem merecem comentário.

    Uma vida com poucas meias é uma vida de expectativa e ansiedade. Toda manhã aquele suspense o abrir a gaveta: quais estariam ali, quais andariam na longa peregrinação que passa pelo cesto, pela máquina, pelo varal – e, se julgar pela demora, talvez por Meca, Fátima, Juazeiro do Norte e Jerusalém?

     Cheguei ao fundo do poço na sexta, 31, dez da noite. Minha mulher batia na porta do banheiro, me apressando para a ceia, enquanto eu, sentado no chão de azulejos, encaixava as meias cinza na boca do secador de cabelos. Não queria virar o ano com os pés úmidos, nem gostaria que todos me vissem  com as velhas meias da Varig quando tirasse os sapatos para pular as sete ondinhas. Naquele momento de angústia, por trás do ruído aeronáutico do secador, dos meus gritos e dos gritos de minha mulher, pude ouvir a voz grave, que vinha de toda parte e de parte alguma: “Antonio:  tu és homem-feito. Pagas as contas e impostos em dia. És casado, asseado, vacinado: por que vives nesta penúria podal?”.

     Se eu soubesse como era fácil, tinha feito antes: nem cem reais, caro leitor, custou minha alforria. Hoje, se quiser, posso ir a tr6es entrevistas de emprego, dois jantares, seis casamentos e jogar futebol, no mesmo dia, sem repetir as meias. Não voltarei a pensar nesse assunto por uma década, no mínimo. Quer dizer, mais ou menos: pois enquanto contemplo a gaveta multicolorida – de saloon do Velho Oeste, transformou-se em baile da corte – minha mulher aparece no quarto, segurando as meias da Varig com as pontas dos dedos, como se fossem camisinhas usadas: “Posso jogar no lixo?”.

     A gente pensa que difícil é tomar as grandes decisões: parar de fumar, pedir demissão, declarar-se à Regininha do Comercial. Às vezes, contudo, são as pequenas escolhas que mais dilaceram o coração.

Em: Trinta e Poucos - crônicas. Págs.48-50 

Comentários

  1. ADNA MARIA FERREIRA DE SOUZA8 de maio de 2022 às 18:42

    Não e da Cora. Tem trechos no pema que não condiz com a época dela.

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  2. Pois é, cara Adna. Postei com o nome da autora e um alerta no final do texto. Mesmo assim a cada dia das mães, alguém vem "corrigir" creditando a Cora Coralina.

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