A gente sempre pensa que a mudança virá de
grandes resoluções: parar de fumar, pedir demissão,
declarar-se à Regininha do
comercial. Às vezes, contudo, são as pequenas atitudes que alteram
definitivamente o rumo de nossa vida. Ontem, por exemplo, pela primeira vez
desde que me conheço por gente, saí pra comprar meias. Sou um novo homem.
O leitor pode achar que estou exagerando. É
que não teve o desprazer de conhecer a minha gaveta de meias até vinte e quatro
horas atrás. Mais parecia um saloon de Velho Oeste: poucos pares estropiados em
meio a pés desconjuntados – tenazes sobreviventes de diferentes etapas de minha
vida.
As três brancas, de algodão, haviam sido
ganhas na compra de um tênis de corrida, lá por 98. A marca da loja, escrita no
elástico esgarçado, já quase não se lia. Pior que as brancas estavam as azuis, da Varig, do tempo em que a
ponte aérea era feita pelos Electras e
as aeromoças davam brindes, não broncas.
Os pés da meia azul não tinham curva no calcanhar nem na canela:
assemelhava-se a coadores de café dos Smurfs. O elástico frouxo, mas o laço
afetivo não, de modo que eu as seguia usando, ano após ano, mesmo diante dos
encarecidos apelos da minha mulher. Em
bom estado mesmo só as cinza, com losangos vinho, que peguei pra completar o
valor na troca de uma jaqueta, presente de Natal em, sei lá, 2002. Era a minha “meia
de sábado” aquela que vestia para jantares, casamento e entrevistas de emprego.
Além dessas havia mais três ou quatro, que de tão ordinárias nem merecem comentário.
Uma vida com poucas meias é uma vida de
expectativa e ansiedade. Toda manhã aquele suspense o abrir a gaveta: quais
estariam ali, quais andariam na longa peregrinação que passa pelo cesto, pela máquina,
pelo varal – e, se julgar pela demora, talvez por Meca, Fátima, Juazeiro do
Norte e Jerusalém?
Cheguei ao fundo do poço na sexta, 31, dez
da noite. Minha mulher batia na porta do banheiro, me apressando para a ceia,
enquanto eu, sentado no chão de azulejos, encaixava as meias cinza na boca do
secador de cabelos. Não queria virar o ano com os pés úmidos, nem gostaria que
todos me vissem com as velhas meias da
Varig quando tirasse os sapatos para pular as sete ondinhas. Naquele momento de
angústia, por trás do ruído aeronáutico do secador, dos meus gritos e dos
gritos de minha mulher, pude ouvir a voz grave, que vinha de toda parte e de
parte alguma: “Antonio: tu és
homem-feito. Pagas as contas e impostos em dia. És casado, asseado, vacinado:
por que vives nesta penúria podal?”.
Se eu soubesse como era fácil, tinha feito
antes: nem cem reais, caro leitor, custou minha alforria. Hoje, se quiser,
posso ir a tr6es entrevistas de emprego, dois jantares, seis casamentos e jogar
futebol, no mesmo dia, sem repetir as meias. Não voltarei a pensar nesse
assunto por uma década, no mínimo. Quer dizer, mais ou menos: pois enquanto
contemplo a gaveta multicolorida – de saloon do Velho Oeste, transformou-se em
baile da corte – minha mulher aparece no quarto, segurando as meias da Varig
com as pontas dos dedos, como se fossem camisinhas usadas: “Posso jogar no lixo?”.
A gente pensa que difícil é tomar as
grandes decisões: parar de fumar, pedir demissão, declarar-se à Regininha do
Comercial. Às vezes, contudo, são as pequenas escolhas que mais dilaceram o
coração.
Em: Trinta e Poucos - crônicas. Págs.48-50
Não e da Cora. Tem trechos no pema que não condiz com a época dela.
ResponderExcluirPois é, cara Adna. Postei com o nome da autora e um alerta no final do texto. Mesmo assim a cada dia das mães, alguém vem "corrigir" creditando a Cora Coralina.
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