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Tarcísio e Glória da Periferia, Antonio Neto

Eu sou filho da empregada. Quando eu e meus irmãos éramos pequenos, minha mãe trabalhou como artesã domiciliar e como diarista. Naquele tempo, as diaristas também eram chamadas de empregadas. Não havia a diferenciação entre as que trabalhavam a semana toda e as que iam alguns dias por semana. Ela complementava a renda familiar com essa atividade. A história, que vou pintar, vem lá do final da década de 70...

Calmon Viana é um bairro de Poá. Lá de casa, íamos a pé para Calmon, até porque não existia transporte público nas periferias. 40 minutos de caminhada. Foi lá que a mamis conseguiu emprego. A cada vez que ela voltava, eu ficava atento às histórias fresquinhas que chegavam!

Era um casal do Rio Grande do Sul. Ele, Seu Guigui, um gaúcho típico, tradicional, daqueles das enciclopédias. Pela descrição física, o associei ao Tarcísio Meira. Ela, Lara, era uma beldade sulista: Glória Menezes. Sendo assim, a mama trabalhava para Tarcísio e Glória da periferia de São Paulo! Eu achava aquilo excitante. E ficava esperando a mãe chegar, cansada, mas com uma história nova.

Seu Guigui era muito respeitoso. Sério, mas boa gente. Trabalhava no ramo imobiliário. Saía com uma roupa impecável, uma pasta preta misteriosa e pilotando um carrão novo. Um galã suburbano para ninguém botar defeito, tchê! Eu queria muito saber o que havia na pasta preta, mas era um segredo secreto dele.  Nas horas de descanso, ele tomava chimarrão e contava causos do Sul. Falava do Minuano, de São Miguel das Missões, de Sepé Tiaraju e outras iluminuras do sul do Brasil. E fazia um churrasco que ninguém em Poá sabia fazer! Barbaridade!

Lara era uma ninfa que vivia entre almofadas e revistas. Uma gata mimosa e indolente, que vivia  ronronando o dia todo. Lia fotonovelas. Assistia às novelas e vivia sua vida de novela. Ela sempre estava como quem acabou de sair de uma banheira de espuma. Se ela entrasse em um rio, certamente se transformaria em sereia, pensava eu.

Esse casal era muito simpático com a minha mãe. Tratavam ela com todo o respeito. Naquela época, havia famílias brancas que não empregavam mulheres negras e outras empregavam, mas maltratavam. E eu sou filho negro de uma mulher negra. Entendi que aquele casal era mais moderno e não estava atado às rígidas regras do racismo que sempre existiu, só que nunca foi assumido, embora imperasse e ainda impere em muitas casas de família.

Por serem tão simpáticos com a minha mãe, torcia para que aquela novela deles tivesse um final feliz! Mas eu nunca imaginei que o final seria, realmente, televisionado, em horário nobre e que fosse como foi! Barbaridade, tchê! Capaz!?

Foi bem assim... Vimos tudo pela televisão! Seu Guigui era “traficante de drogas”. Que que é isso!? Eu entendi que “traficante” era o mesmo que pirata e que “drogas” era o que vendia na drogaria. Que mal poderia haver nisso? Um pirata de remédios! Mas a polícia não pensava assim!

 Eles fugiram! Uma fuga cinematográfica! Coisa de Hollywood! Levaram todos os documentos e pertences íntimos! Não deixaram pistas... No dia seguinte, a mãe não foi trabalhar, porque não havia mais ninguém lá. Quem iria imaginar que Seu Guigui era aquele negócio lá! A gente nunca nem tinha ouvido falar em traficante!

Onde estarão eles? Devem estar septuagenários, vivendo à beira da praia em Fortaleza, em Angra dos Reis ou em Trancoso. Quem sabe?

 Série: Eu Sou filho da Empregada. 

(1) Tarcísio e Glória da Periferia

(2) Vó Barnabé

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