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Loja de Colchões, Antonio Prata

      A loja de artigos esportivos tem as paredes forradas por fotos de jovens correndo, escalando
montanhas, remando canoas. O supermercado exibe cartazes com casais brindando, crianças babando sorvete, velhinhos comendo mamão. A confecção da esquina expõe as roupas na vitrine em manequins, como se fossem uma turma de amigos a contemplar a paisagem. Todo o comércio se esmera em criar um climinha em torno do produto, em imitar os ambientes e situações em que ele será usado: só as lojas de colchão é que não. Nesses cubos brancos, banhados de luz fria, os colchões são expostos nus, sem direito sequer a lençol, sobre camas em que ninguém dormiu nem dormirá - e isso me deixa triste como o diabo.

     É o colchão, não o cachorro, o melhor amigo do homem. Do colchão viemos, ao colchão voltaremos, se não na última de nossas noites, aquela que não verá aurora, ai menos ao fim de cada dia, quando esgotados pela vigília e purificados pelo banho, sonhamos com mulheres nuas e elefantes alados - ou elefantes vestidos de mulheres aladas: nunca se sabe o que pode acontecer num colchão, depois que se apagam as luzes.

        O colchão é o locus do sono, do sonho, do sexo; é um bom companheiro, ninguém pode negar. Por que então, ó Deus, as lojas em que são vendidos mais parecem consultórios dentários, templos calvinistas? Não sei. Mas andei pensando umas coisas aí.

     Talvez a intimidade entre colchão e seu dono seja tanta que impossibilite uma ambientação verossímil. Um decorador que tentasse criar um clima acabaria transformando o estabelecimento num sex shop ou no quarto de um estranho - e nada nos é mais íntimo do que a intimidade alheia. Daí que as lojas tenham essa pinta de tupperware gigante, onde os colchões, pavões sem plumas, aguardam seus futuros donos em silêncio, exalando antiácaro.

        Os futuros donos andam por entre as camas, apertando timidamente a espuma. Um ou outro, mais ousado, senta na beiradinha. O vendedor incentiva: "Vai em frente, deita, sente as molas! E o revestimento? 100% algodão egípcio!" O cliente sorri amarelo, não quer deitar, não que que saibam como, de noite, sonha com mulheres nuas, elefantes alados, ou vice-versa. Não vê a hora de adotar um colchão, levá-lo dali e lhe dar casa, cama, roupa lavada. 

        No mundo todo é assim. Já vi lojas de colchões em Girona, interior da Catalunha, na avenida Xietu, zona sul de Xangai, em Poughkeepsie, norte de Nova York. Não muda: câmaras criogênicas, como aquelas em que astronautas aguardam, congelados, a longa viagem de volta para casa, nos filmes de ficção científica. É a vida sem vida. Talvez só os bares de strip e as praças de alimentação sejam lugares mais tristes do que a loja de colchões. Mas só talvez.


Em: Meio Intelectual, Meio Esquerda, Antonio Prata, Ed. 34, 2010, págs.28-29


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