Pular para o conteúdo principal

Nairobi, Odjaki

     Quando se aproximou, a mulher trazia vestida no corpo a carga de uma notícia. Eu não quis
acreditar. Pensei que (eu) estivesse a ler sinais inexistentes.
     Mas é sabido: há sinais inconfundíveis. Há factos que nos encontram. No mar ou no deserto. Na escuridão ou na maresia.

     Havia ruído. A mulher teve o cuidado de esperar que a multidão se dissipasse. Eu sabia que não esperava nada. E quando não espero nada, posso estar muito tempo assim.
Ela esperava não sei o quê. Mas esperou.

     É verdade que se aproximou devagar e que esteve um largo pedaço de tempo à espera que a multidão seguisse seu destino. Não deixa de ser curioso que duas pessoas sentadas no aeroporto, e paradas, podem fazer a vez de um polícia sinaleiro ou de uma esquina. Tanto um sinaleiro como uma esquina dão caminho a multidões. 

    "Se não é pesado o silêncio não incomoda", começou a mulher. Disse-o como quem fala para quem quiser ouvir. Há coisas que só nos chegam se as quisermos ouvir.
E se o nível de ruído circundante permitir.
   
     Às vezes, mesmo um aeroporto pode ser um lugar vazio. Os lugares, quando são grandes, contêm um vazio maior. Mas, dentro de cada um, o vazio não se equipara ao tamanho dos lugares. É assim que uma pessoa pequena pode conter um enorme vazio e a pessoa grande um vazio menor.
     Só cada dono poderá saber o tamanho do seu vazio.

     A mulher apontou para o meu telefone: "essas coisas contêm música, não é?? Acenei afirmativamente. E pensei: há coisas que têm e tocam música. Também as lembranças estão cheias de músicas." O vazio do aeroporto espalhava em nós uma tranquilidade avassaladora.

     De novo, apontou para o telefone. O seu dedo, pequeno, movia-se como uma pena. Leve. Muito leve. "Procure uma música chamada Rising ." Uma pontada de tristeza invadiu-me o coração. "Lhasa é o nome da cantora", disse, ainda suave. "Eu sei." A música começou. Os olhos da mulher encheram-se de lágrimas. As músicas estão cheias de lembranças. "e de sensações...", disse a mulher.

     A mulher, sem olhar para mim, foi dizendo que conhecia a música de Lhasa desde o início da carreira. Que tinha ido a muitíssimos concertos. E que tinha uma notícia para me dar. Que talvez eu já soubesse. Ou não. Mas, é sabido: há sinais inconfundíveis.

     O seu dedo, leve, apontava para o telefone. "Ponha aquela canção de nome Bells. E prepare-se: tenho uma triste notícia para lhe dar."
     Como seres humanos, estamos alguma vez preparados para uma triste notícia?

     Vi as horas. Em breve eu deveria partir. A mulher tinha-se sentado ali, tão perto de mim, para me falar da morte de Lhasa. De modo separado, chorámos juntos. Há factos que nos encontram. Na escuridão ou na maresia, todos os lugares são internos.
     O silêncio não nos incomodava. Não dissemos mais palavras. Esperei que terminasse a música, e parti.
     Tanto um aeroporto como uma música dão caminho a multidões.
     Ou a um homem só.


                                                             
O Céu Não Sabe Dançar Sozinho, Ondjaki, 2014, págs.67-69.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di...

Vamos pensar? (18)

Será que às vezes o melhor não é se deixar molhar?  

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica...