Disse que logo descobriu que as mulheres eram diabos disfarçados,
sereias traiçoeiras, tentações infernais, peçonhentas no coração
e na boca, copuladoras vorazes. (...) Que traíam e levavam a alma
do homem ao inferno. Mas nada havia de tão delicioso quanto este
inferno.
Ana Miranda, Boca do inferno
Imaginem um professor respeitável, espécie de professor Immanuel Rath (o velho professor que se apaixona pela cantora de cabaré, a Marlene Dietrich, no clássico filme Anjo Azul) dos nossos tempos. Doutor em Letras pela Universidade de Vincennes, maior autoridade brasileira em crítica biográfica, a crítica literária que se baseia no estudo da vida do autor, leitor voraz dos clássicos da literatura universal, casado 33 anos com dona Estela (o casal perfeito, comentavam os amigos), não de todo barrigudo e nem um pouco careca às vésperas dos cinqüenta anos, fidelidade conjugal pela qual boto a mão no fogo, pai de dois lindos rebentos, um professor de educação física e uma cantora lírica - será que esqueci algum detalhe na apresentação do professor Matias Santoro?
Mais fácil acreditar na invasão da Terra pelos marcianos que no fim do enlace de Matias e Estela. Mas a praga das separações que assola os casais deste início de século, qual praga bíblica que vem bater às portas dos lares egípcios, também veio bater à porta do lar dos Santoros. (O motivo, ninguém sabe.) Só faltava - pontificou um amigo - um tribunal decretar a falência da instituição casamento, ex-célula mater da sociedade. "O último a se separar, apague a luz..."
O professor Matias alugou um apê sala e quarto no Leblon. E o apoio moral dos amigos e colegas (Matias era muito estimado no meio acadêmico) impediu que mergulhasse de cabeça no abismo da depressão. O vazio do tempo, Matias preenchia-o com leituras e estudos. Mas como lidar com a novidade do vazio sexual?
Homem na meia-idade, após décadas de virtuosa militância conjugal, de há muito perdeu a prática do flerte, da paquera. Praticar o sexo solitário? Entrar em sala de sexo virtual? Tudo muito frustrante pra quem vivera embalado pelo sexo regular e metódico como o nascer e pôr do sol.
O terapeuta (sim, Matias teve que recorrer a um psicoterapeuta) deu a sugestão: entra numa academia de dança de salão, você vai se distrair, conhecer gente nova. Mas Matias se sentia inseguro, desajeitado. Até que o analista escancarou: quer saber de uma coisa? O jeito é você ir a uma terma. Tem uma muito boa lá no Jardim Botânico, bem discreta, numa ruinha lateral meio escondida. Deu nome, endereço, serviço completo.
Metódico que era, Matias entrou no Google e pesquisou o nome da terma que o analista havia recomendado. E foi aí que um mundo novo do sexo irrefreado se lhe descortinou. Descobriu um fórum cujos participantes trocavam informações sobre termas e casas de massagens. "Caaaaraaaaaacoles! (dizia alguém sobre a terma do Jardim Botânico) Este lugar é o paraíso! Minha nossa! Gatas inacreditáveis, shimbação (sic) à vontade, é um lugar onde fiquei com a cabeça igual a um ventilador olhando as garotas. Contei sete que eu queria papar."
Matias tomou coragem e dose de uísque, e foi à luta. E se encontrasse algum aluno por lá? Mas aí pensou: com essas gurias todas dando fácil fácil (não é como no meu tempo que tinha que pagar puta na zona), pra quê que um universitário vai torrar duzentos e tantos reais nas termas? Estacionou umas três quadras distante e foi caminhando calmamente como quem não tem nada pra fazer na vida.
Vini, vidi, vinci. Chegou, presto entrou, simpática recepcionista perguntou:
- É cliente?
- Não, primeira vez.
Ela explicou tudo direitinho: quanto custava, que o dinheiro da garota tinha que ser pago à parte. O vestiário (onde Matias deixou roupa e sapato num escaninho e vestiu um roupão), a sauna e ducha, a boate com as garotas, tudinho.
Segundo andar, a boate. Penumbra quase de cinema (pupilas levaram bons cinco minutos pra se ajustarem). Garotas de biquíni. Lourinhas & moreninhas. Jovens. Popozudas. Som atordoante pra ouvidos mais afeitos a quartetos de cordas.
Cinco minutos: Jane (assim disse chamar-se a menina) abordou-o. Conversa vai, conversa vem, seu nome, mora onde, essas trivialidades. Chope. Mão respeitável na bundinha da devassa.
- Vamos fazer um amor gostoso?
Na cabine, vontade de se beliscar pra descobrir se estava acordado ou sonhando (claro que isto é uma hipérbole de escritor). Mocinha com idade pra ser sua aluna, ali, nuazinha, como se ele, o respeitável professor Matias, tivesse morrido mártir da guerra santa e acordado no sétimo céu dos maometanos. "Em companhia de huris, de cândidos olhares, semelhantes a pérolas bem guardadas."
Se eu fosse escritor naturalista - desses que se divertem em épater les bourgeois - contaria nos mínimos detalhes as mil e uma acrobacias sexuais a que se entregaram sofregamente o nosso mui respeitável professor e sua namorada de aluguel, dignas de comporem nova edição, revista e atualizada, do Kama Sutra. (Um parêntese: sôfrego, ele; pra ela, profissional do sexo, aquilo não passava de rotina.) Mas não foi nada disso. Ficaram no consagrado papai-e-mamãe, que nisso o professor, formado pela boa e velha escola do matrimônio, era mestre cum laude. Mas não foi um papai-e-mamãe burocrático qualquer de casal com décadas de monotonia.
Naquele papai-e-mamãe o professor Matias como que regrediu (regressão a vidas passadas) à primeira noite da lua-de-mel.
Ana Miranda, Boca do inferno
Imaginem um professor respeitável, espécie de professor Immanuel Rath (o velho professor que se apaixona pela cantora de cabaré, a Marlene Dietrich, no clássico filme Anjo Azul) dos nossos tempos. Doutor em Letras pela Universidade de Vincennes, maior autoridade brasileira em crítica biográfica, a crítica literária que se baseia no estudo da vida do autor, leitor voraz dos clássicos da literatura universal, casado 33 anos com dona Estela (o casal perfeito, comentavam os amigos), não de todo barrigudo e nem um pouco careca às vésperas dos cinqüenta anos, fidelidade conjugal pela qual boto a mão no fogo, pai de dois lindos rebentos, um professor de educação física e uma cantora lírica - será que esqueci algum detalhe na apresentação do professor Matias Santoro?
Mais fácil acreditar na invasão da Terra pelos marcianos que no fim do enlace de Matias e Estela. Mas a praga das separações que assola os casais deste início de século, qual praga bíblica que vem bater às portas dos lares egípcios, também veio bater à porta do lar dos Santoros. (O motivo, ninguém sabe.) Só faltava - pontificou um amigo - um tribunal decretar a falência da instituição casamento, ex-célula mater da sociedade. "O último a se separar, apague a luz..."
O professor Matias alugou um apê sala e quarto no Leblon. E o apoio moral dos amigos e colegas (Matias era muito estimado no meio acadêmico) impediu que mergulhasse de cabeça no abismo da depressão. O vazio do tempo, Matias preenchia-o com leituras e estudos. Mas como lidar com a novidade do vazio sexual?
Homem na meia-idade, após décadas de virtuosa militância conjugal, de há muito perdeu a prática do flerte, da paquera. Praticar o sexo solitário? Entrar em sala de sexo virtual? Tudo muito frustrante pra quem vivera embalado pelo sexo regular e metódico como o nascer e pôr do sol.
O terapeuta (sim, Matias teve que recorrer a um psicoterapeuta) deu a sugestão: entra numa academia de dança de salão, você vai se distrair, conhecer gente nova. Mas Matias se sentia inseguro, desajeitado. Até que o analista escancarou: quer saber de uma coisa? O jeito é você ir a uma terma. Tem uma muito boa lá no Jardim Botânico, bem discreta, numa ruinha lateral meio escondida. Deu nome, endereço, serviço completo.
Metódico que era, Matias entrou no Google e pesquisou o nome da terma que o analista havia recomendado. E foi aí que um mundo novo do sexo irrefreado se lhe descortinou. Descobriu um fórum cujos participantes trocavam informações sobre termas e casas de massagens. "Caaaaraaaaaacoles! (dizia alguém sobre a terma do Jardim Botânico) Este lugar é o paraíso! Minha nossa! Gatas inacreditáveis, shimbação (sic) à vontade, é um lugar onde fiquei com a cabeça igual a um ventilador olhando as garotas. Contei sete que eu queria papar."
Matias tomou coragem e dose de uísque, e foi à luta. E se encontrasse algum aluno por lá? Mas aí pensou: com essas gurias todas dando fácil fácil (não é como no meu tempo que tinha que pagar puta na zona), pra quê que um universitário vai torrar duzentos e tantos reais nas termas? Estacionou umas três quadras distante e foi caminhando calmamente como quem não tem nada pra fazer na vida.
Vini, vidi, vinci. Chegou, presto entrou, simpática recepcionista perguntou:
- É cliente?
- Não, primeira vez.
Ela explicou tudo direitinho: quanto custava, que o dinheiro da garota tinha que ser pago à parte. O vestiário (onde Matias deixou roupa e sapato num escaninho e vestiu um roupão), a sauna e ducha, a boate com as garotas, tudinho.
Segundo andar, a boate. Penumbra quase de cinema (pupilas levaram bons cinco minutos pra se ajustarem). Garotas de biquíni. Lourinhas & moreninhas. Jovens. Popozudas. Som atordoante pra ouvidos mais afeitos a quartetos de cordas.
Cinco minutos: Jane (assim disse chamar-se a menina) abordou-o. Conversa vai, conversa vem, seu nome, mora onde, essas trivialidades. Chope. Mão respeitável na bundinha da devassa.
- Vamos fazer um amor gostoso?
Na cabine, vontade de se beliscar pra descobrir se estava acordado ou sonhando (claro que isto é uma hipérbole de escritor). Mocinha com idade pra ser sua aluna, ali, nuazinha, como se ele, o respeitável professor Matias, tivesse morrido mártir da guerra santa e acordado no sétimo céu dos maometanos. "Em companhia de huris, de cândidos olhares, semelhantes a pérolas bem guardadas."
Se eu fosse escritor naturalista - desses que se divertem em épater les bourgeois - contaria nos mínimos detalhes as mil e uma acrobacias sexuais a que se entregaram sofregamente o nosso mui respeitável professor e sua namorada de aluguel, dignas de comporem nova edição, revista e atualizada, do Kama Sutra. (Um parêntese: sôfrego, ele; pra ela, profissional do sexo, aquilo não passava de rotina.) Mas não foi nada disso. Ficaram no consagrado papai-e-mamãe, que nisso o professor, formado pela boa e velha escola do matrimônio, era mestre cum laude. Mas não foi um papai-e-mamãe burocrático qualquer de casal com décadas de monotonia.
Naquele papai-e-mamãe o professor Matias como que regrediu (regressão a vidas passadas) à primeira noite da lua-de-mel.
IVO KORYTOWSKI nasceu no Rio de Janeiro em meados do século passado. Graduou-se e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou dois livros: Édipo (Editora Ciência Moderna), primeiro lugar do Prêmio Orígenes Lessa da União Brasileira de Escritores de 2003, e Português Prático (Editora Campus), livro de dúvidas e curiosidades da língua portuguesa ilustrado pelo Jaguar. É tradutor profissional, tendo traduzido quase cem livros de variados assuntos e autores, entre eles Stephen Hawking, Richard Bach e Paul Auster.
Fonte: http://www.bestiario.com.br/14_arquivos/papei.html
Imagem: www.assombrado.com.br
Nota: o blog manteve a grafia original.
Nota: o blog manteve a grafia original.
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