Eu conto:
Ia prestar o meu exame final de português, quando papai, após me fazer umas tantas e quantas perguntas sobre a matéria, explodiu num daqueles rompantes que só ele tinha:
- Você não sabe nada, nada, absolutamente nada! Uma vergonha! Não pode fazer exame assim!
Protestei com energia:
- Posso!
- Não pode!
Pensei ganhar a partida:
- Mas o meu professor disse que eu estava preparado.
E o resultado prático desta categórica definição foi não consentir que me apresentasse à chamada e me arranjar um explicador - um excelente homem, apesar de aparentemente rabugento, e de muita fama, tanto por seus altos conhecimentos gramaticais como pela sua insociabilidade.
Um ano de aulas noturnas, a dez mil reis cada uma, e veio outro dezembro, que era o mês fatídico dos exames. Fui aprovado, mas a nota alcançada constituiu uma legítima decepção paternal, e como não podia negar o valor do novo mestre, que ele conhecia e escolhera,num triste franzir de beiços meu pai externou a sua desprezadora opinião sobre a minha capacidade intelectual. Não me importei. Fechei decididamente a Gramática Expositiva a Antologia Nacional e voltei-me para as matérias que me faltavam para terminar o curso de preparatórios, pois via no fim dele uma espécie de liberdade ( que francamente, ao chegar, foi uma desolação). Mas continuei a freqüentar a casa do professor, preso pela amizade do filho, um rapazinho magro, mais moço do que eu, terrível devorador dos livros do pai, que enchiam umas treze reforçadas estantes espalhadas pela casa toda, já que o escritório e a sala de visitas eram de reduzidas proporções.
Dois, três, quatro anos se foram, até que uma noite o professor recebeu um livro embrulhado, coisa que acontecia diariamente, aliás, pois ele era muito acatado nas rodas literárias de então. Abriu o embrulho, desajeitadamente, rasgando o papel cor-de-rosa, abriu o livro: o Poeta admirava sinceramente o gramático e enviava-lhe a produção com uma singular dedicatória. Lendo por cima dos espessos óculos, folheou-o alguns segundos e jogou-o na cesta de papéis: - Mais um futurista! - e atirou-se num trabalho tremendo sobre o gerúndio, que havia de fazer furor em Portugal.
O filho era menos apriorístico nas opiniões. Dobrou as pernas de cegonha e apanhou o livro na cesta. Se era menos apriorístico, dava na mesma - seus julgamentos formavam pela bitola paterna. Chamou também o Poeta de futurista, teve uma frase áspera para defini-lo, e arrumou o livro, não na cesta, mas num canto da sala, onde ele ficou caído como um pássaro de assas abertas. Aí abaixei-me, peguei o infeliz volume, de capa branca e título modesto, abri-o:
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
- Vou levar este livro para mim - disse fechando o livro e encostando-o inexplicavelmente contra o coração.
- É um favor que está prestando.
Senti-me ferido, pensei no Poeta, olhei com piedade para o meu amigo que se espichara no sofá. E ele se mostrava tão tranqüilo que não houve mais lugar para piedade. Tive-lhe ódio, um ódio imenso.
In:Rebelo, Marques. Contos reunidos.
Nota: o blog manteve a grafia original.
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