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O Homem Que Queria Eliminar a Memória,Ignácio de Loyola Brandão


     Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. Disse que era caso de vida e morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham; subitamente, estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar-comum.
     Estava na sala diante do doutor. Uma sala branca, anônima. Por que são sempre assim, derrotando a gente logo de entrada?
     O médico:
     – Sim?
    – Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.
    – Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?
     – Porque eu quero.
     – Sim, mas precisa me explicar. Justificar.
     – Não basta eu querer?
     – Claro que não.
       – Não sou dono do meu corpo?
       – Em termos.
       – Como em termos?
      – Bem, o senhor é e não é. Há certas coisas que o senhor está impedido de fazer. Ou melhor; eu é que estou impedido de fazer no senhor.
      – Quem impede?
      – A ética, a lei.
     – A sua ética manda também no meu corpo? Se pago, se quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E se acabou.
     – Olha, a gente vai ficar o dia inteiro nesta discussão boba. E não tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?
     – Quero eliminar a minha memória.
     – Para quê?
     – Gozado, as pessoas só sabem perguntar: o quê? por quê? para quê? Falei com dezenas de pessoas e todos me perguntaram: por quê? Não podem aceitar pura e simplesmente alguém que deseja eliminar a memória.
    – Já que o senhor veio a mim para fazer esta operação, tenho ao menos o direito dessa informação.
    – Não quero mais lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim!
    – Não é tão simples assim. Na vida diária, o senhor precisa da memória. Para lembrar pequenas coisas. Ou grandes. Compromissos, encontros, coisas a pagar.
     – É tudo isso que vou eliminar. Marco numa agenda, olho ali e pronto.
     – Não dá para fazer isso, de qualquer modo. A medicina não está tão adiantada assim.
     – Em lugar nenhum posso eliminar a minha memória?
     – Que eu saiba não.
     – Seria muito melhor para os homens. O dia a dia. O dia de hoje para a frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança ruim ou boa, nenhuma neurose. O passado fechado, encerrado. Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se lembrar sequer do que se tomou no café da manhã? E para que quero me lembrar do que tomei no café da manhã?
      – Se todo mundo fizesse isso, acabaria a história.
      – E quem quer saber de história?
      – Imaginou o mundo?
     – Feliz, tranquilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante projetado para a frente.
     – Não seria bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência comprovada através de quê?
      – Quem quer comprovar a existência?
      – A gente precisa.
      – Para quê?
    O médico pensou. Não conseguiu responder. O homem tinha-o deixado totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse outro dia. Despediram-se. O médico subiu para os brancos corredores do hospital, passou pela sala de operações. Chamou um amigo.
     – Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérebro. Eliminar a memória. O que você acha?

     – Muito boa idéia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.

Cadeiras Proibidas: Contos - Rio de Janeiro, 1984, p.32-34.

Nota: o blog manteve a grafia original
Imagem: www.fluxodopensamento.com



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