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O Desfile dos Chapéus, Aníbal Machado


à Rubem  Braga

O comparecimento de todos os chapéus que tive e usei - não posso precisar se começou no  sonho e aí terminou, ou se no  sonho teve início e prosseguiu no  estado de vigília.
        Apresentando-se em  fila indiana ou  em  grupos, êsses chapéus se deslocavam com movimentos próprios, o  que tornava ainda mais  bizarra sua aparição.
       Os que vinham  em  grupo voavam baixo num  céu de chumbo - céu que se explica na visão onírica pela leitura dos jornais da véspera,  carregados mais que nunca de acontecimentos nefastos. E o  sonho daquela noite deixara de ser um armistício de repouso.
         Eu  sabia que das peças de indumentária o  chapéu é a  que mais transforma a figura do homem, a que mais perto priva de sua intimidade -consciência da vizinhança próxima do  cérebro, do  qual  absorve as irradiações. Enquanto nôvo, é um protetor, se não elemento  decorativo; depois de usado, vira documento moral.
        A recordação da lenda tibetana de um chapéu que o vento arrancara a alguém e projetara longe, numa campina, onde o  deixaram ficar, aí se transformando num ser vivo e demoníaco´- essa recordação de antiga leitura teria também influido como "conteúdo latente" do  sonho que se vai  referir.
       Foi o  caso que me senti levado, não  sei  como, a uma região severa onde entrei com a certeza de que  "não era ali".
      Cheguei mesmo  a repetir alto: - "não é aqui! não é aqui!"
      Não  era ali, o  quê? Pois não poderia ser ali?...
      Eu vagava numa paisagem fora de uso, com massas de sombra e árvores despidas. Qualquer coisa de cemitério abandonado, com movimentos e rumôres - assobios fininhos, cochichos, começos indistintos de vaia - em  desacôrdo com  a sua tranqüila grandeza. Havia Mesmo em  tudo uma malícia difusa, secreta intenção de fazer mal, zombar da gente...
     Ao fundo, colunatas e uma estátua de mármore num  espaço desolado como nos primeiros quadros de Chirico.
     Ao lado, como sempre, uma piscina- piscina que se coloca freqüentemente dos meus sonhos, tal um  túmulo aberto à minha espera. Várias crianças já mortas e esbranquiçadas retirei  dela...
     Passeava eu  então  distraido. A campina era florida. Não  sei  bem  se campina, corredor de casarão colonial ou praça pública, pois o  cenário mudava sempre, pôsto que sempre a mesma fosse a atmosfera.
     Eu procurava informações debaixo das pedras, atrás das colunas, no alto das árvores. Queria saber onde se conspirava contra mim. E como ventasse de maneira esquisita, pareceu-me que qualquer resolução já havia sido  tomada, tanto  assim que um  de meus antepassados vinha chegando, ouvindo-se bem  seus passos. Ao percebê-lo, reclamei que nada mais eu  tinha com  ele, que a vida agora era outra coisa; que até faria melhor se voltasse ao  túmulo donde não  deveria nunca ter saído. Só passou minha aflição, quando o vi  retirar-se resmungando... devia estar ressentido com  as minhas palavras, mas que fazer?
     A piscina me olhava sem parar. A luz baixou até mudar de substância e confundir-se com a do  silêncio. Tudo estava preparado para alguma coisa.
Foi quando passou o  primeiro  chapéu, ligeiro como um  ratinho. Estranhei-lhe a ligeireza, quando  é sabido  que os fantasmas caminham devagar e que as coisas do passado reaparecem lentamente como as cidades exumadas, e as velhas recordações.
       O chapéu seguiu na direção não  sei  bem se das docas de um pôrto invisível, ou se de alguma igreja em ruínas. Mal desaparecera  lembrei-me de que o  seu  jeito era familiar, e o reconheci depois de ter passado.
      Não  foi  com  certeza o primeiro que ganhei, mas era dos mais antigos. Usei-o  até o  fim, na fase capital da adolescência, quando  a cabeça que cobria abrigava idéias confusas, que me perturbavam. Lembrava-me de que não o havia tirado para ninguém. eu  era então ousado  e rebelde, e a vida parecia intacta ainda, pronta a me ser oferecida.
           Atrás do primeiro, outros chapéus iam aparecendo e desmontando o meu  passado.
           Com um  deles enterrado até às orelhas - aquêle de fêltro sovado que lá vai  rolando atrás do  veículo - andei pensando  dias e noites numa solução que afinal não  tomei, porque o barranco era alto  e me faltou coragem. Certa vez,  e ainda me ardia a juventude, não  resisti à tentação de saber o  fundo do mistério. Mas do barranco  fatal que ia servir de passagem, recebi  a advertência: "agora não, bôbo! Nem  há espaço para ti; experimenta primeiro  a vida... ainda não  tens direito à morte".
         Seria de fato um  absurdo: se nasci foi mesmo para viver. Atirei apenas o palhêta. E voltei para a vida.
         Deram-me outro  chapéu, e é êsse quem  vem  se aproximando com movimento  de dança, enfunado como  vela que impele os barcos.
         Debaixo dêle é que te pudes apreciar melhor, sombra enorme do mundo. Sob as suas abas meus olhos se dilataram de espanto, minando água que era resina do íntimo fervor.
A cabeça que êle então  abrigava acendia-se como lâmpada que via sem  ser vista.
(Foi no  tempo em  que era fácil conversar com as pedras,ouvir as árvores, privar com os rios, os animais, o vento- tempo em  que as imagens do mundo se descobriam pela primeira vez. Inauguração do universo!... eu ainda nem  sabia a linguagem dos homens!)
        Êsse chapéu presidira ao meu  casamento com as coisas.
        Mas outros estavam  surgindo. Passavam perto, davam uma voltinha. Havia vento de combinação  com  eles, que  soprava sem  direção certa, empurrando-os ou recolhendo-os. Cada qual tentava mostrar um trecho de biografia, um momento do  que por mim fôra pensado e vivido.
       Não conseguia mesmo saber se era com  espírito cordial que faziam essa exibição retrospectiva, ou se vinham com ar de sarcasmo ridicularizar um passado que afinal nem  valeu a pena.
      Chapéus bem  sujinhos e miseráveis, os dêsse tempo...
      O que se passa no homem, debaixo de seu chapéu!...
      Desde o começo, o ambiente era mais de vaia do que de apoteose.
     Tu, por exemplo, cartola, que vieste fazer aqui? Caíste da lua? algum dia te botei?... Ah, botei sim, uma vez...Eras apenas um  simples aparelho de produzir autoridade. Eu vivia então contra mim. O que te ofereci foi uma cabeça vazia.
Então me sentia importante e, inefável imbecil, sorria para a multidão que aplaudia os grandes da arquibancada, dentre os quais eu  era tomado como  tal. Nem sei como foi  aquilo...
Como havia excesso de grandes homens naquela tarde, mandaram-nos para o porão e o  telhado, de onde ouvimos o hino  cívico.
        Nessa tarde, uma chusma de chapéus arruaceiros (chapéus ou crianças?) cercava a aparição da cartola. No meio, sobressaia um palhêta impossível. O chapelinho magricela não deixava em paz a velha cartola. Depois, quando esta virou casca de inseto, as formigas a foram transportando para um  cemitério de cartolas, que os urubus sobrevoavam no  fundo da paisagem.
       Surgiram em seguida os chapéus que andei tirando para todo mundo. Pareciam aborrecidos da vida. Reuniam-se em  tôrno de um  velho guarda-chuva que era só pele e ossos. Êsse grupo vinha em  romaria ao  seu antigo  dono. Eu era então o falecido. E estava explicada, assim, a presença ali da piscina-sepultura, sôbre a qual boiavam, como fôlhas secas, boinas, bonés e toucas da primeira idade.
        Depois disso (será que já vivi tanto?) chapéus em  profusão, todos os chapéus do  passado apareceram em  vagas sucessivas.
        O céu coalhara-se dêles. Soltavam-se. Nos que passavam perto e devagar eu me reconhecia.
       Olha aquêle com  que fiquei esperando resposta; o  que me ajudou a chocar a ideia maluca; o  que fiz de travesseiro; o com que neguei o  cumprimento a certos sujeitos; o com  que matei a sede num  córrego; o  que fêz sombra para um pensamento literário; e êste outro,ainda molhado de chuva, com  que esperei a amada no portão;e êste outro que me  deu um ar tão bestinha; o  que enterrei com  raiva na cabeça; o  que me ajudou a fugir, de madrugada; o  que durante a perseguição me serviu de barraca e esconderijo; o  que  amarrotei nas mãos trêmulas, ao  fazer o pedido; o  com que conspirei no  fundo  do  bar; o  que voou pela janela do  trem; o  que joguei como um  coração arrancado aos pés da amazona, no  circo. E êsse outro que um  dia tirei com  alegria, para saudar a vida!.
     Ah! chapéus... com as cicatrizes do vento, do  suor, das chuvas, da lágrimas!... Aquêle, furado, que vem  oscilando como um  bêbado, cheguei  a estendê-lo a um  rico, numa tarde de chuva. E, envergonhado, êle se recolheu a si mesmo antes de receber a esmola.
     "Chapéus dos maus o bons momentos, refazendo a história de uma vida revogada -a cabeça que um  dia cobristes vira-se agora para o lado onde nascem  as coisas, onde a vida recomeça. A gente aprende enfim a transformar a dor em  alegria e incorporando-se a tudo e tudo  absorvendo, acaba confundindo-se, anônimamente, na substância da criação.
       É tempo, chapéus, de fechar-se o ciclo da estupidez, tempo também de o "eu", cabina infecta, libertar-se das insignificãncias que tiranizam a criatura. Quem  quiser salvar-se, destrua antes o seu inimigo privativo, Esqueça-se de si mesmo. Chapéus, a vida começa enfim  a valer a pena!"
      Mal iniciava eu êste discurso,certos movimentos me fizeram  suspeitar que outra vez velhos chapéus começavam a zombar de mim. Pelo menos, brincando  estavam. Debaixo de cada um  se colocava uma imagem de minha figura segundo as metamorfoses da idade.
      Diversos manequins  risíveis, em  farândula, puxavam a minha forma precária até o presente; - eu , alvoroçado, descendo a ladeira a caminho  da cidade; subindo-a  depois, de cara fechada; eu aflito; ridículo, querendo  chorar, pondo de nôvo o  chapéu para outras partidas; saudando os amigos; parado na esquina, como um basbaque; na praça; caminhando para o  encontro proibido; querendo entrar em  festas; nos enterros; sonhando  nos bancos; esperando  a môça; eu, envaidecido a dizer e ouvir  bobagens; com o  chapéu do conflito; com o  chapéu que enchi de frutas; com o  chapéu com  que fui  vaiado...chapéus da adolescência e da maturidade, variações de meu  ser moral e histórico, desdobramentos de minha figura...
    Cada um de nós se inscreve nos objetos que usa. Estou também nos meus chapéus. E os meus, antigos, estão compondo numa só imagem as diversas imagens do homem que ora assiste à passagem dêles.
    Uma cidade nublada. Entro numa rua sem  nome.
    - Madame, aqui é o  29? Esqueci o meu  chapéu... não  se assuste minha senhora... é um  simples chapéu... não é nenhuma bomba. Por favor... está sentindo  alguma coisa? a senhora parece desgraçada, tão  triste... E tão  bonita...Meu Deus!... Não  querererá fugir no meu  chapéu? seremos felizes...
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    - Olha o chapéu, cavalheiro, a procissão está passando...
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     - Não  está ouvindo?  é o Hino  Nacional. Vem  aí o  chefe, tira o  chapéu, seu idiota!
     Havia também chapéus no 71 e no 138. De que rua e cidade não  sei  dizer. E chapéus que foram  esquecidos nos cafés, nos bondes, nos bancos de trem  de ferro, nos consultórios, nas praias. Chapéus que vinham dos subúrbios e dos campos.
     E êsses que não tomaram parte no  desfile e se deixaram ficar pelas pontes e à beira de viadutos, na mesma posição  em  que foram  abandonados?
    Chapéus de suicida, se eu estivesse perto agarraria o desesperado pelo  braço: "Homem, não  será preciso  tanto; escureceu um pouco para ti, mas foi um minuto; é porque a claridade está se abrindo mais adiante; corre para lá, pega o  teu  chapéu.
A vida continua."
   Outros foram moídos sob rodas de caminhão, ou fugiram pelo  asfalto a fora, os donos atrapalhados correndo atrás. O grosso dêles, porém, fazia evoluções. Vi-os escorrendo por um  water-shoot, ondulando num  vagão de montanha-russa, correndo pelas estradas: - chapéus da
mocidade. Pode ser que me enganasse, mas nesse momento mais pareciam borboletas, só faltavam gritar de alegria. Quereriam dar-me nova lição de vida?
   Chapéus da era otimista, podeis chegar! Eu também mudei.
Já disse que aprendi com  a vida. Estou livre, não me escondo mais, tirei para sempre o  chapéu...
    Mas êles me evitam. Não precisam mais pousar na cabeça de ninguém. Brincam  se atropelando uns aos outros. Livres, também.

    Abandonado  agora numa planície sem  fim.
    E os chapéus? pergunto. Sumiram-se. Sumiram-se também as piscinas e colunatas. Fiquei  esperando.
    Um mar, um mar escondido na neblina desde o princípio, começa a subir lentamente. E à superfície afloram detritos do passado, velhos sapatos, roupa usadas. coisas sujas,vergonhosas coisas vêm chegando de mais longe na água de gosma e pútridos reflexos.
    A neblina se dissipa. No  fundo, coqueiros, índios construindo malocas, garimpeiros explorando rios.
    Espaço  da memória ancestral, mergulho os olhos em  teu  vazio.
    E eis, no horizonte, todos os chapéus de outrora, em  formação completa, despedindo-se de mim... pela última vez "tirando-me o chapéu"...




(Do livro: A morte Da Porta-Estandarte e outras hoistórias-Ed. José Olímpio 4ªedição- 1972)


Nota: o blog manteve a grafia original.

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