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Conversas de Táxi,Boris Fausto

Rio de Janeiro. Estou num táxi rumo ao Santos Dumont.
     - Oito, três, meia.
     - Oito, três, meia?
     É, olha a placa do ônibus.
     Olhei, era o final da placa. Diante da minha incompreensão, o taxista explica:
     - Jogo faz dez anos no 836, e nada. O Anísio é que fica cada vez mais rico.
     Pontuo com uma obviedade:
     - O bicho é bom para o bicheiro, não é bom para quem joga. A mega-sena é quase a mesma coisa, só que quem ganha é o Governo.
     A observação incômoda passa em branco.
     Ainda por cima, o Anísio tem um triplex de cobertura aqui na avenida Atlântica, de frente para o mar. Eu ajudei a comprar. Já, já eu lhe mostro.
     - Bom, você deve ter ajudado com meio tijolo, quando muito.
     - Pode ser, mas ajudei.
     Eu, moralizando:
     - Não acho que a gente deva invejar a vida do Anísio. Ele esteve preso e até mandou matar alguns concorrentes.
     - Isso é verdade. Eu estava passando aqui pela avenida uma vez e vi a prisão do cara. Tinha um montão de gente na calçada.
     Me pareceu que ele simplesmente confirmou o fato da prisão, sem se convencer muito da minha observação sobre o destino dos maus.
     - Sabe, outro dia um passageiro deixou no banco de trás, aí onde você está, um livro de história do Rio de Janeiro. Eu li, mas vou ler de novo porque era um livro  desses grandes, com uma quarenta páginas. Lá conta a história do Barão de Brummond, um barao do tempo do Império que perdeu uma grana que ele ganhou do Imperador. Então, no Jardim Zoológico, ele inventou o jogo do bicho. Devia ser mais divertido do que hoje. A turma jogava, alguém perdia e alguém ganhava, e, conforme o bicho dava, subia a figurinha dele num poste. Isso também é história, não é?
     - Claro que é - disse eu, admirando a modernidade do taxista, no campo dos objetos da história. Com isso me animei a corriji-lo:
     - A história é essa mesmo, só que o nome do barão era Drummond e não Brummond.
     Ah, isso mesmo. Drummond de Andrade, não é?
     Explico que Drummond de Andrade era poeta, e tão famoso que fizeram uma estátua dele sentado num banco, na frente do mar, em Ipanema.
     O taxista não se lembra da estátua e desconfia:
     - Se não era Drummond de Andrade, como era o nome completo dele?
     Não sei, Drummond era sobrenome, quem sabe o nome dele era Carlos.
     Errei o tiro. O homem se iluminou: 
     - Agora me lembro, era o barão Carlos Drummond de Andrade.
     - deve ser - respondo, resignado.

O Brilho do bronze- um diário: Boris Fausto. São Paulo,Cosac Naify, 2014, págs 19-20

Nota: O jogo do bicho foi criado pelo barão João Batista Viana Drumond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro em 1892.Especulação financeira  e jogatina na bolsa de valores nos primeiros anos da república  causaram grave crise ao comércio. Para estimular as vendas, os comerciantes instituíram sorteios de brindes. Assim é que, querendo aumentar a frequência popular ao zoológico, o barão decidiu estipular um prêmio em dinheiro ao portador do bilhete de entrada que tivesse a figura do animal do dia, o qual era escolhido entre os 25 animais do zoológico e passava o dia inteiro encoberto com um pano. O pano somente era retirado no final do dia, revelando o animal do dia. (Wikipedia)

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