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Ponga-La-Márcara! Ronaldo Wrobel.

Eu tinha sete anos quando minha tia resolveu levar a criançada para a praia e outro carro bateu
na nossa traseira. Nada grave, apesar do estrago. Minha tia não teve culpa, mas o motorista do outro carro foi grosseiro com ela e a cena juntou gente. Cheguei em casa alvoroçado: meu primeiro acidente de carro! Contei os minutos para o Jornal Nacional, na esperança de ser notícia. O descaso do Cid Moreira me abalou até meu pai explicar que milhares de carros batiam uns nos outros e que acidentes só viravam notícia quando envolviam gente famosa ou muitas vítimas. Conclusão: eu deveria ficar famoso para ver meus acidentes na televisão.
Enquanto a fama não chegava, tive que me contentar com dramas alheios. Terremotos, incêndios, atentados terroristas, catástrofes que deixavam o Cid Moreira triste e preocupado. Aos domingos, o Fantástico mostrava o Hélio Costa e a Sandra Passarinho de cachecol no inverno europeu, muito sérios, soltando fumaça pela boca, falando sobre Guerra Fria, mísseis nucleares e usina atômica com música de terror ao fundo.
Cresci vendo desgraça na televisão, como todos da minha geração. A fome africana impressionava com aquelas pessoas esqueléticas, apáticas, morrendo às dúzias enquanto a babá me forçava a comer fígado com quiabo, ensopadinho de chuchu e outras iguarias da culinária doméstica. Chantagens emocionais me obrigaram a engolir muita gororoba naqueles tempos.
Comoção à parte, havia um fosso intransponível entre meu universo infanto-juvenil e as grandes notícias. Às vezes minha avó falava em guerras, revoluções e epidemias com uma naturalidade esquisita, assim como eu falava em bicicleta e Chicabon. Eu sabia que ela tinha nascido na Europa e migrado para o Brasil porque “as coisas não andavam fáceis por lá”, deixando pais e irmãos que morreram na Segunda Guerra. Triste, mas a culpa não era minha. Além do mais, as coisas também não andavam fáceis na escola desde a última nota vermelha em matemática.
Acompanhávamos notícias de Israel com interesse especial por sermos judeus e termos parentes em Tel Aviv. Mas depois do Jornal Nacional vinha a novela das oito (que nunca era às oito) e só queríamos saber quem tinha matado Salomão Hayalla.
A adolescência me apresentou a palavras como democracia, anistia, abertura, inflação. O início da vida adulta foi fortemente marcado por pautas jornalísticas: AIDS, Tancredo, Chernobyl, Constituição de 1988, Queda do Muro de Berlim.
Nos anos 1990, a internet permitiu acessos mais rápidos, focados e interativos com o noticiário. Em 2001 tivemos aquela terça-feira inesquecível. Chovia bastante no Rio. Multidões se aglomeravam em frente às lojas de televisão para assistir aos ataques em Washington e Nova York. Telefonávamos para pessoas queridas em tom de despedida: a Terceira Guerra Mundial estava deflagrada. Só que as coisas não mudaram muito na rotina carioca. Ônibus e trens continuavam cheios, torcedores continuavam a xingar juízes de futebol, ladrões continuavam a roubar, motéis baratos continuavam sem água quente, feirantes continuavam a chamar as clientes de madame. O Natal de 2001 reuniu as famílias normalmente e o Réveillon de 2002 superlotou Copacabana.
Por vários anos, tive a certeza de que nenhum fenômeno mundial voltaria a nos atingir como o 11 de setembro. Ledo engano.
2020 foi uma porrada inacreditável. Nunca tantos sofreram tanto no mundo inteiro. Fronteiras desmoronaram. Bastava ter pulmões e artérias para estar no mesmo barco. Piadas sobre a pandemia funcionavam em qualquer lugar, vindas da Guatemala ou do Cazaquistão. Notícias de qualquer confim tinham relação direta com aquela tosse, aquela febre, aquela fadiga. Dessa vez o Cid Moreira estava realmente preocupado, a Sandra Passarinho usava máscara e quem matava Salomão Hayalla era a Covid-19.
Definições básicas foram atualizadas. Dor, alívio, razoabilidade. 2020 foi implacável com zonas de conforto, certezas, prepotências, autoenganos, vaidades e carências estridentes. Ninguém teve muito tempo para fazer bilu-bilu em umbigos dengosos – inclusive no próprio. Não deu para encenar martírios épicos no closet enquanto o vizinho era internado às pressas. Não deu para chorar pitangas no travesseiro caso os dedos e oxigênios estivessem em seus devidos lugares. Não deu sequer para se culpar por erros do passado e lamentar aquela escolha infeliz quando a vida ainda tinha escolhas, pois todas as vidas que pudéssemos ter vivido teriam um encontro marcado com aquele calmante, aquela live do Roberto Carlos, aquele aspirador de pó barulhento, aquela pizza de micro-ondas feita para engordurar madrugadas insones.
2020 me lembra um incidente na Argentina, em 2004. A cabine do avião foi tomada por um cheiro horrível enquanto sobrevoávamos a Patagônia, entre Ushuaia e Buenos Aires. Tirei os fones do Walkman, desviei o olhar da janela e vi passageiros atordoados, tentando ajustar suas máscaras de oxigênio. Não entendi nada até um comissário alarmado vir em minha direção: ponga la márcara, ponga la márcara! (márcara é licença fonética: escreve-se máscara em espanhol). O alto-falante gritava tripulación, emergencia! Uma máscara pendia acima da minha cabeça, enrolada num elástico. Ou seja: segundos atrás eu comia biscoitos e ouvia Caetano Veloso, pensando em Alfajores, Piazzollas e Abaporus, para agora indagar se eu, os outros passageiros e o ponga-la-márcara estaríamos vivos dali a instantes. Nenhuma fumaça lá fora. Ideias a mil: quantos incidentes como aquele deviam acontecer diariamente, sem maiores consequências? O mar ficava logo à direita e havia cidades médias lá embaixo. Não fazia sentido morrer sem rever Buenos Aires!
Pois o avião desceu a uns quatrocentos metros de altitude, estabilizou e o piloto nos autorizou a tirar as máscaras. Fazia um calor dos diabos e a cabine fedia a fumaça, mas ninguém reclamou. Silêncio absoluto durante uma hora e quinze. Pousamos no Aeroparque sem risos nem aplausos. Precisamos nos amparar uns aos outros no desembarque porque vários passageiros não conseguiam se levantar sozinhos. Saltamos pela porta traseira, trêmulos, suando cataratas, mas bem. Só que, em vez de entrarmos no ônibus do aeroporto, caminhamos em torno do avião feito um enxame de zumbis, observando a fuselagem, examinando as turbinas, procurando entender o que teria ocorrido. Ficamos sem resposta: nenhuma avaria aparente.
O falatório irrompeu no ônibus lotado: passageiros e tripulantes se confraternizavam aos berros, até o ponga-la-márcara dava gargalhadas. Uma senhora jurou que nunca mais pisaria em aviões e um europeu cogitou voltar para casa de navio. Era uma linda tarde portenha. Olhei para o céu, extasiado, dando graças a Deus porque nosso infortúnio não iria parar no Jornal Nacional.


Nota: copiei e trouxe o texto acima com a autorização do autor.






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