Pular para o conteúdo principal

A Assembleia das Crianças Inadequadas, Antonio Neto

 In memoriam de Diolina Ribeiro da Silva

     Éramos poucas na região, sete no total. Nos conhecíamos desde sempre. Quando éramos bebês, nos comunicávamos pelo olhar. Depois que crescemos mais um pouco, criamos estratégias para nos comunicarmos sem chamar a atenção das pessoas adequadas. Havíamos nascido em corpos inadequados ou na época inadequada: éramos as crianças inadequadas. A cidade jamais poderia nos entender ou nos aceitar plenamente. Nós sabíamos disso!

     O Grupo Escolar “Água Vermelha” era o nosso ponto de encontro, porque estávamos espalhadas pelos bairros de Poá: Jardim Emília, Obelisco, Pinheiro e redondezas. Ao ingressarmos na escola, fizemos um forte pacto de proteção, pois éramos os alvos preferidos dos meninos que faziam maldades. Por meio de sinais e de um vocabulário próprio, mantínhamos contato sem despertar suspeitas sobre nós.

     Em cada bairro havia um Protetor ou Protetora de crianças inadequadas: homens e mulheres que sabiam quem nós éramos e nos amparavam. Dona Diolina era a Protetora do meu bairro. Ela era uma mulher negra, vinda da Bahia e que enxergava pelos olhos do Amor.  Trazia-nos palavras de esperança, de consolo e apoio e, quando precisávamos, estava por perto com suas fortes asas de anjo.

     Nessa época, quando minha mãe ia trabalhar nas casas de família, eu e meus irmãos ficávamos com a minha Vó Dina. Era muito divertido, porque a Vó nos reunia e desenhava pegadas de animais selvagens no chão. É que ela era neta da índia Barnabé, por isso tinha um pouco da sabedoria dos povos da floresta. No chão, iam surgindo desenhos que reproduziam perfeitamente as pegadas de onças, veados, quatis, tamanduás, antas, emas, jacutingas e outros animais.

     Ah! A Vó também gostava de nos contar como foi o casamento dela. Fazia isso para provocar o meu avô, Seu Antonio, o Padim Velho. Eles faziam, com bastante frequência, um campeonato de provocações e ironias. Ele era muito calmo, não demonstrava as emoções; assim – quase sempre - ganhava a disputa. Ela era mais agitada, ficava nervosa e, por isso, perdia as partidas de provocação. 

      Ela contava que ainda era uma menina, não tinha peitos e não era “moça formada”. E que o pai dela, o Vô Cândido, havia decidido que ela iria se casar com Antonio, um homem viúvo que tinha uma filha pequena, chamada Isabel. Porém, ela já gostava de um rapaz:  Vicente, o de olhos verdes. Naqueles tempos, quando o pai decidia, os filhos obedeciam. Também, o Vicente não passou montado no cavalo branco para buscá-la e, ainda por cima, desapareceu do norte de Minas Gerais. A Vó Inácia ainda perguntou se ela queria se casar com Antonio. Então, sem o Vicente e com a imposição do pai, ela disse “Sim!”. Mas, poderia ter dito que “Não!”. A Vó Inácia era filha da índia Barnabé, e poderia ter adiado o casamento, porque - entre os indígenas- as meninas precisam passar por “rituais de passagem” antes de se casarem. Pelo sim, pelo não, ela contava a história várias vezes, para fazer o Padim Velho se sentir culpado por ter se casado com uma menina que ainda não tinha peitos e  não era “moça formada”. Porém, ele não reagia, ficava olhando para dentro de si, indiferente. E foi de tanto ouvir “moça formada”, que eu quis saber o que significava:

     - Vó, o que significa “moça formada”?

     Ela estava de cócoras, mas se levantou ligeira, pigarreou e foi para a casa da Tia Cida. Quando ela pigarreava, eu já sabia que era assunto encerrado. No outro dia, na escola, comuniquei às outras crianças inadequadas que eu tinha um assunto para conversar com elas. Marcamos, então, a Assembleia das Crianças Inadequadas para aquela tarde. Era tempo de pipa e poderíamos nos misturar aos meninos que alegravam os céus com pássaros coloridos, feitos de papel de seda. À tardezinha, com a desculpa de caçar insetos, nos reunimos em local mais afastado na imensa área onde ficava o campo de futebol. As crianças adequadas não ligavam para nós, éramos chamados de mocorongos, debiloides, morféticos e mongoloides. Desprezados e ignorados, tínhamos a privacidade necessária.

     Iniciada a Assembleia, contei a história do casamento da minha Vó e lancei a pergunta:

     - O que significa “moça formada”?

     Todos se entreolharam. Olhos arregalados! Rugas nas testas!

     Então, um menino disse que “moça formada” era a menina que tinha estudado muito e participado da formatura da escola. Só que nós não aceitamos a resposta, porque se fosse isso, a Vó teria respondido. Era algo mais profundo, misterioso.

     Foi aí que o menor dos meninos inadequados contou que “moça formada” é quando as meninas começam a ter vazamento de sangue, e que isso acontecia todos os meses. E que todas as mulheres passavam por isso e, ainda mais, elas colocavam panos entre as pernas, para conter o vazamento.

     Que absurdo! Protestamos! Como aquilo poderia ser possível? Entre as crianças inadequadas havia uma menina. Ela disse que nunca tinha sangrado e que nunca tinha ouvido falar disso... Pensem bem: se as mulheres tivessem vazamento de sangue todos os meses, todas estariam mortas!!! 

    Aquele menino tinha ido longe demais! Era proibido mentir na Assembleia das Crianças Inadequadas! Demos a chance para ele dizer que era mentira ou brincadeira, mas ele reafirmou, e foi além:

     - Minha mãe e minhas irmãs têm vazamento de sangue todos os meses!

     Não tinha jeito! O menino estava mentindo e ainda falava mal da mãe e das irmãs!!

    Decidimos pela pena máxima: a saraivada de mamonas! Fomos juntar as sementes de mamona. O menino ficou lá, esperando pela aplicação da penalidade. Juntamos bastante munição! O menino, então, tirou a camisa e ficou à espera da punição. Pegamos as mamonas, miramos aquele corpinho mirrado para começar a saraivada! Contudo, de repente, um vento forte soprou e Dona Diolina surgiu do nada. Abraçou o sentenciado e impediu a aplicação da pena. Na presença dela, todos tínhamos que obedecer. A Assembleia foi dissolvida, fomos embora; mas indignados!

     No outro dia, na escola, não conversamos mais com o mentiroso!

    Como pode um menino inventar um absurdo desses!? Falar mal da mãe e das irmãs!? E mentir, logo para nós, que tínhamos que nos unir para sobreviver no mundo das pessoas adequadas!?

Comentários

  1. Voltei lá atrás na sua infância ,o menino curioso com aquele brilho no olhar querendo sempre saber mais, mas fomos educados de maneira que não podíamos perguntar muitas coisas aos mais velhos ,pois dependendo do papo era falta de respeito, mas vc ousava em buscar em revistas e livros , fazendo suas assembléias em busca de insetos , só para ganhar distância e conversar com os amigos. E desta forma este menino foi longe .Eu só tinha 10 anos a mais que vc , não poderíamos bater muito papo ,mas sempre fui sua amiga ,hoje somos libertos para conversarmos o que quiser , sucesso sobrinho. Me recordo do dia em que me perguntou .O que é amor tia ??? Tenho certeza que nunca esquecerá da minha resposta.kkkkk

    ResponderExcluir
  2. Excelente, António! Viagem aqui na sua narrativa, lembrando dos causos da minha infância também.

    ResponderExcluir
  3. Leo, parabéns me sinto honrado em fazer parte dessa história.

    ResponderExcluir
  4. Agradecido, meu caro amigo!

    ResponderExcluir
  5. Sem palavras, que honra ter minha mãe Deolinda, nesta narração cheia de nostalgia. Claudinéia

    ResponderExcluir
  6. Sem palavras, que honra ter minha mãe Deolinda citada nesta narrativa cheio de nostalgia.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard