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O Sim e o Não, Francisco Azevedo


     Nossa língua tem coisas engraçadas. Exemplo? Aqui, no Brasil, não damos o sim como resposta.
Damos o verbo. Você lembra o que aconteceu? Lembro. Quer lembrar mais? Quero. Sae o que isso significa? Sei. E por aí vai sem nunca pronunciarmos um único sim. Com a negativa é diferente. Dizemos não e pronto. Você lembra do que aconteceu? Não. O não é imediato, preciso, definitivo. O sim se omite. O não se impõe. Cismo. Se até no gesto o sim vem antes do não. O recém-nascido, primeiro, diz sim ao peito. Só depois, farto, diz não. Vou mais fundo e me dou conta de que o sim é movimento para cima e para baixo. O não é movimento para os lados. Por isso, para bem ninarmos um bebê, é preciso balançá-lo de leve com sins e não alternados. Ao se familiarizar com os dois polos, ele dormirá tranquilo. Aprendi essa lição nas madrugadas que passei com o Nuno e a Rosário. Vou adiante, descubro possibilidades. A paixão diz sim. A castidade diz não. A tentação diz sim. A virtude diz não. A saúde diz sim. A doença diz não. O esbofeteado diz não, o guardanapo na boca diz não, o pêndulo diz não. A freada do carro diz sim, os limpadores de para-brisas dizem não. As retas de estrada dizem sim. As curvas dizem não. A plateia de um jogo de tênis diz não. No futebol, o artilheiro tem de dizer sim e o goleiro tem de dizer não. Pois sim quer dizer não. Pois não quer dizer sim.
     - Antonio, chega! Isso já é delírio.
     - Falando sozinho?
     -Eu?
     Isabel me conhece há mais de 60 anos. Sabe que tenho este hábito desde moço, mas insiste em perguntar sempre que me flagra. E eu me faço de desentendido. Não passo recibo. Nunca. Ela acha graça. Não me importo. Ficamos por aí. Ainda mais hoje. Não tenho tempo para isso. Eu aqui na cozinha. Eu aqui um velho de 88 anos. E toda essa gente que vem para almoçar. Louco, eu? Louco, sim. E feliz, com a graça de Deus. Mangas arregaçadas e mãos na massa. Reclamo? Imagina! Amo! Encaro a responsabilidade. Me remoça, o desafio. Nem vejo minhas rugas. Respiro a plenos pulmões. Minha cozinha é o centro do universo. Eu o criador do prato principal e dos que giram ao redor, doces e salgados. Mesa farta, a perder de vista. Pode encher o prato, repetir a vontade. Um dia não são dias. Quer alegria maior? A família toda reunida! Confio. Ninguém faltará. Ninguenzinho. Nem velhos nem crianças. Astros e estrelas estão perfeitamente alinhados. A Vontade Individual, o Destino e a Providência Divina, forças que decidem, também estão de pleno acordo. Meus irmãos e eu faremos jus à saúde que ainda temos. Nós os gravetos em um só feixe! Nós os mosqueteiros do rei! 
     Um por todos, todos por um.
     Pode achar que é doidice, que é mais uma das minhas, mas ninguém me tira da cabeça de que foi aquela primeira e única, repito, primeira e única visita de papai, mamãe e tia Palma nos fizeram, no distante 1950, que costurou este nosso encontro agora, em 2008. Nunca tinham saido daqui de Santo Antonio da União para nada. Estavam arraigados neste chão como três árvores centenárias. Floresceram e deram frutos. Realizados, queriam nos reunir todos ao mesmo tempo em alguma ocasião. Era sonho recorrente. Não conseguiram. Não havia meios de nós irmãos acertarmos nossos ponteiros. Sempre descompasso, sempre desencontro, sempre desacerto. Hoje sei: nos faltou boa vontade. Se tivéssemos sido um pouquinho menos egoístas, teríamos encontrado a maneira de proporcionar aos velhos essa alegria. "Maomé não vai à montanha? A montanha vai a Maomé"- provérbio que puseram em prática.     Lição de vida.
     Talvez a última que nos deixaram.
     Enquanto estiveram comigo - só me dei conta muito tempo depois - os tr6es me trataram como se fosse filho único. Deles, todas as atenções, curiosidades e comentários eram para o meu núcleo familiar, para os meus feitos, para o meu cotidiano. Em minha casa, nenhuma refer6encia a Leonor, ou a Joaquim ou a Nicolau, a menos que eu ou Isabel lhes fizéssemos alguma pergunta. Aí sim, respondiam com alegria e sempre de modo a nos aglutinar.
     No último dia, Tia Palma me pediu, com a maior naturalidade do mundo, que os colocasse num táxi. Conforme combinado, iriam passar uma semana na Tijuca com o Nicolau e a Amália. Estavam curiosos para rever a Maria da Glória, que já deveria estar bem grandinha.
     - Táxi? Que bobagem é essa? Posso perfeitamente deixá-los lá. O Joaquim não vai levar vocês de São Paulo até o interior para que vejam a Leonor? Então? O que me custa dar um pulinho ali na Tijuca? Pelo amor de Deus, Tia, assim a senhora até me ofende!
     Tia Palma achou graça da minha veemência, disse que não fez por mal, apenas não quis causar constrangimento. Sabia que Isabel e eu não falávamos com a Amália há tempos e que, por isso, nos havíamos afastado de Nicolau. Mas diante de tamanha indignação, aceitou de imediato o oferecimento, feliz da vida. E eu, mais que ela, por ter um belo pretexto par rever meu irmão.
     Tia Palma tinha esse dom: transformar fel em mel, amargor em doçura. Era firme - sua justiça, a de Salomão. Mas era doce, mesmo quando se zangava. Com seu jeitinho, ia conseguindo tudo o que queria. Ou quase tudo. Quando fui para o Nicolau e nos encaixamos forte e demorados, os Céus me presentearam com uma visão inesquecível: a expressão de tia Palma. Foi ela, tenho certeza, que me ajudou a prolongar e a apertar aquele abraço.
     Amália me cumprimentou gentil, mas cerimoniosa. Convidou-me a entrar. Infelizmente não era possível, eu disse. Isael precisava de mim no restaurante. Ela lamentou, aliviada. Nicolau e eu tornamos a nos olhar nos olhos e a nos abraçar. Foram bons esses segundos grudados um no outro. Voltei para o carro. Nem cheguei a conhecer a Maria da Glória, lamentei baixinho comigo. Acenos da porta. Uma menininha de seus três anos veio lá de dentro, conseguiu passar entre muitas pernas. Era a minha sobrinha, só podia ser. Nicolau fez com que ela também desse adeus. Buzinei de leve, duas vezes. O som saiu triste, embargado. Eu senti e eles também. 
     Maria da Glória virá hoje para o almoço. Trará os filhos. O mais velho, me disseram, tem 25 anos e já é pai.




Em: O Arroz de Palma, Rio de Janeiro, Ed. Record 2019, págs. 183-185.

     


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