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Prezado Sargento. Marcelo Valença

Há pouco mais de três semanas nos conhecemos. Você trouxe um olhar de dúvida que encontrou meus ouvidos
cansados. Dois noctívagos desconhecidos num canto qualquer nos fundos de um prédio caixão. Você podia passar por mim com um grunhido qualquer de cumprimento desinteressado, ao qual eu devolveria um arrulho por mera educação. Estou beirando os quarenta e você tem cara de sessenta. Já tivemos tempo suficiente nesta vida para desenvolver aquela camaradagem fática a que todos os homens das nossas gerações foram paulatinamente treinados. Barulhos pré-históricos que demonstram como podemos ser desimportantes uns para os outros.

Mas você puxou uma pergunta. Quer saber como funciona o aplicativo do governo para ter a carteira de habilitação digital no celular. Tudo bem, entendo. Seus cabelos brancos te fazem mais velho que minha calvície e o instinto de ajuda aos idosos já me compele a interromper o vídeo genérico a que eu assistia e abrir o aplicativo no meu celular. O seu é Android também. Baixa na play store. Você precisa criar uma senha. Precisa do código Renavan. Não não, eu também sou daqui, apesar de ter sotaque de lá. Sim, já faz muito tempo que me mudei. Pois é, estou de passagem apenas.

 

Eu quero encerrar as instruções. Passa das duas da manhã, começa a passar também a minha insônia. Mas você persiste. Tem algo mais aí, eu sei. Uma história de blitz, daquelas com carteirada de militar aposentado. Agora sei mais de você do que intencionava saber. Já me era suficiente julgá-lo coroa preguiçoso, que passa os dias assistindo televisão e cultivando uma barriga protuberante. Você também já sabia que eu te julgava assim e isso é tudo o que você vai saber de mim. Você sabe que todos passam pela sua janela e que sabem que está sempre só. Ninguém assiste tanta novela, tanto noticiário sensacionalista, tanto filme dublado de sessão da tarde e de corujão sem ser ao menos um pouco solitário. É um prédio caixão, afinal.

 

Quem mora aqui já está meio morto por dentro, embora insista em fingir que não está.

Você é viúvo, sargento da reserva. Seus filhos moram na cidade mas não vêm te visitar, ao menos não desde que sua esposa morreu. Ah, o celular morreu sem bateria. Tudo bem, é só mais um de nós que se vai nesta noite que não leva ninguém a lugar nenhum. Deixa para a próxima, sendo a próxima um tempo que nunca chegará. Ambos sabemos que não haverá próxima, pois sabemos igualmente que nem esta conversa deveria existir.

 

Eu quero ser vago, escolho palavras lenientes. Você agora pergunta sobre mim, mas não se interessa de verdade. Sei que apenas procura uma deixa para contar alguma história. Eu não quero ouvir suas histórias, nem a história de ninguém. Tenho mais alguns dias neste cemitério de vivos e depois vou embora viver o que acho que é minha vida. Me julgo vivo ainda, maior que todos neste lugar. É passageiro, sou passageiro aqui.

 

Você acaricia a própria barriga sob a rota camisa do Santa Cruz FC, deixa sair o ar pela boca, como algo entre um suspiro e um arroto. É mais quente que o ar ao redor e cheira a cerveja barata. Se eu acho que você devia casar depois de ser viúvo? Quero mandar-lhe ir dormir ou ir à merda, mas pressinto novamente outra camada atrás da pergunta. Digo-lhe que se você acha que está vivo, então devia viver. A parede atrás de nós é azul desbotada e apresenta marcas de infiltrações. A camisa do tricolor do Recife é antiga. Leva o patrocínio de um banco que não existe mais e o escudo do time deixa transparecer os pelos brancos do seu peito. Por trás deles, um coração decadente como um time da série C. Talvez D.

 

Então você casou dois anos após enviuvar. Seus amigos te chamaram de trouxa, de prego e de chifrudo. Mas você casou mesmo assim. Foi feliz mais um ano. Ela era bonita, ex-personal trainer. Você prometeu que o dinheiro dela seria só dela e o seu seria de ambos. Não esperaria nada diferente de você, Marco. Um macho-dinossauro à beira da extinção, agarrando-se à beleza como se fosse a salvação. Resolveu mudar de vida, que bom. Ela te colocou para correr todos os dias e equilibrou seus carboidratos. Você regularizou a habilitação e os impostos do carro. Pagou o iptu em dia e a levou solene ao cartório para o casamento. Sua filha não aprovou, seu filho te ignorou mas você foi convicto ao cartório registrar o novo amor. Acho justo. No fim das contas, do que importam as malícias dos amigos ou a aprovação dos filhos? Você tem sua vida e deseja vivê-la. Isso eu te falo agora novamente, mas, desta vez, realmente acredito nas minhas palavras.

 

Do banco de concreto, passo a mão pela parede do prédio. O reboco caído solta um pó fino de cal. Sinto-o ressecar a ponta dos meus dedos e deduzo que o prédio já foi branco, antes de ser azul. Você quer estar habilitado para dirigir, já que pouco é habilitado para viver. Seu gesto amplo aponta os carros perfilados na garagem sem precisar qual te pertence. Não precisa. O Uno vermelho numa das pontas certamente é o seu. Tem no para-brisa dianteiro um adesivo descascado com o desenho de uma cobra coral e buracos de ferrugem nos para-lamas, pelos quais consigo ver partes da suspensão dianteira. Ano 97, mesma idade da filha.

 

Foram 37 anos de casado, dois como viúvo, um ano casado novamente e hoje você completa três meses do divórcio. Um amor perdido, uma ilusão vivida e dois períodos de desespero. Não, desespero não, que é isso. Claro, sargento aposentado não se desespera. Homem forte, braço viril do exército brasileiro, digno de admiração e honra pelo passado triunfante que ninguém viu e ninguém liga. Peço desculpas, não queria lhe ofender. Digo-lhe então que divórcios acontecem, não quer dizer que tenha sido ingênuo ou que não valeu a pena o segundo casamento.

 

Sentir falta é natural, o divórcio é recente. Então ela te acusa de ter ficado agressivo quando parou de correr e voltou a beber? Foi ela quem te afastou da bebida e te colocou nos eixos? Olha, Marco, agora fico preocupado. Agressão é coisa séria, alcoolismo também. A ligação entre os dois frequentemente vira violência doméstica. Levanto do banco de concreto em que estamos, chego mais perto da parede e sinto o cheiro de mofo. Sei que atrás da pintura azul e da pintura branca há umidade e bolor. Sei também que isso não vai me fazer bem. Vai me entupir as narinas e atrapalhar ainda mais meu parco sono. Você também levanta. Esboça sem sucesso uma postura intimidadora. Em pé sou bem mais alto que você. Trinta centímetros a mais e vinte anos a menos, no mínimo. Fecho os punhos, firmo as pernas. Estou pronto para fuga ou luta. Tenho minha parcela de macho-dinossauro e sei erguer o peito e a voz. Marco, o que você fez com sua ex-mulher?

 

Jogado sobre o banco do Uno um fardamento indica sgt. Marco Polo, B-. Você parece ter tanto orgulho da farda quanto do clube de futebol. Na minha cabeça a imagem é clara. Bêbado de meia idade, alcoólatra recaído, com porte de arma e histórico de vida reprimida pela hierarquia militar. Invadiu o whatsapp da esposa, desconfiou de qualquer coisa e deixou a testosterona cegar a razão. Chamo-lhe veementemente por patente, nome e sobrenome enquanto deixo minha própria razão esvair-se em violência. Sargento Marco Polo, o que você fez com sua ex-mulher?

 

Sua virilidade esmaece e você deixa o corpo cair de volta no banco. A parede atrás de você deixa cair mais pó de cal. Por trás do azul, do branco e do bolor há um resto ocre do que devia ser vermelho. Deste vermelho corre um filete de água marrom e dos seus olhos rubros corre um filete de água salgada. Nada, você me diz. Absolutamente nada. Ela te fez feliz enquanto você nada fez a ela. Quando ela foi embora você não fez nada. Abriu uma garrafa de whisky barato e deixou-se a fazer nada. Ela foi embora fazer a vida e você deixou-se a fazer nada de si. Não fez escândalo nem poesia. Não fez amigos nem terapia. Bebeu a saudade inteira e quando esta acabou, fez o pouco que lhe restava fazer. Saiu para comprar mais.

 

Do contrário, só fez desfeitas: desfez a habilitação pelo combinado álcool e direção. Desfez a honra pela propina ao guarda de trânsito para que ele liberasse o carro. Desfez a rota quando acertou o para-choques no portão. Desfez as contas com cinco garrafas de Johnny Walker a prestação. Desfez o orgulho quando a filha te encontrou no estacionamento tentando manobrar o Uno 97 em vão. Desfez a masculinidade quando deduziu que era corno sem mesmo saber se era ou não. Desfez a noite e o dia entre a novela e o Domingão do Faustão.

 

Quanto a mim, Marco Polo, não creio que possa te ajudar. Tenho minhas próprias camadas de tinta para retocar e prefiro não depositar minhas chances em desconhecidos insones. Qualquer outro ser pré-histórico como eu pode te oferecer igual solicitude e desconfiança. Alguns mais pacientes, outros nem tanto. O risco é grande e o senso de proteção mútua masculina é um mito, assim como a nossa força. Você mesmo disse que apesar de jovem eu tinha um raciocínio inteligente. Agradeço por ambos os elogios, mas sei que não tenho nem tanto intelecto nem tão pouca idade quanto julgas.

 

Quis te ajudar e quis te bater. Agora, honestamente, quero que você consiga, como um bom pedreiro, alternar entre as doses de cachaça e as demãos de argamassa até que sua parede esteja lisa novamente. Tão lisa quanto você consiga fazê-la. Tão lisa quanto consiga conceber para a vida num prédio caixão.


Leia do mesmo autor:

Encanto

Lugar Algum

 

 


Comentários

  1. Adorei! Gostei da parte que diz "não fez amigos nem terapia". Duas coisas tão importantes das quais a ideia antiga de masculinidade acaba privando os homens

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  2. Isso. Carro, cachaça, urros animalescos em arquibancada e necessidade de oprimir não substituem uma terapia...

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  3. Eu vi tanta poesia na prosa... Gostei. Profundo, reflexivo, masculino sem deixar de ser também vulnerável e frágil como, às vezes, não supomos ser o mundo dos homens... Parabéns!

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