Pular para o conteúdo principal

Acabei de ler: Doce Gabito, Francisco Azevedo

 

Se na hora extrema do vamos ver nem pessoas centradas demonstram tanta firmeza, que dizer de mim, que já nasci sob o signo do devaneio e do desvio? Desde menina, vivo em planos paralelos - por alienação, mecanismo de defesa, sei lá. É assim que sobrevivo. Religiões, aceito, mas não as tenho. Monges, sacerdotes, rabinos, pastores, médiuns e mães de santo. Oráculos, videntes e cartomantes. Respeito todos os que  pela erudição ou intuição, ousam trabalhar como intermediários do Desconhecido. Mas meu caminho é bem outro. Falo como sonhadora incurável que, bênção ou maldição, perambula entre o Olimpo e o Hades, bebe de todas as fontes e prova todas as águas que correm por aí, turvas ou cristalinas. Todas em movimento. Água parada, nunca. E desse modo deverá ser até o fim. Fim?  O "morreu, acabou" dos ateus é muito cômodo. A verdadeira paz eterna. Quem será capaz de inventar descanso maior?  O relax definitivo! O meu medo é que, distante da complexidade da vida, a morte não seja desfecho tão primário e elementar assim.

     Estou perdida em minhas elucubrações quando dou com Gabito sentado na ponta da cama. Chega, como sempre, sem avisar. Nessas horas de perda e de vazio só a presença amiga nos vale e nos conforta. A presença amiga que não traz explicações, traz amor - que bem mais precioso nos poderia ser ofertado? 

    Gabito compreende minha aflição. Mas acha sofrimento inútil querer entender o que não está  ao nosso alcance. Se, no estágio em que nos encontramos, o mistério faz parte da equação, usamos dos fantásticos recursos da poesia para lidar com ele. E formulemos criativas hipóteses para as nossas soluções finais. Com o tanto que babemos, tudo vale. Do perpétuo nada às festivas bem-aventuranças! Democraticamente. Cada um com direito à sua explicação, à sua inspiração, à sua invencionice.

     Somente Gabito para trazer humor numa horas dessas. A última vez que nos vimos foi ano passado, no dia do nosso aniversário. Depois? Agradeço o sinal de presença que me deu, lá em Buenos Aires, com as flores que me chegaram pelas mãos de Alfonsina. Houve muitos outros sinais, ele garante. Aqui no Rio também. Eu é que não estive atenta.  Mas não me culpa de modo algum. Os compromissos cotidianos nos desviam a atenção.  E muita poesia se perde no caminho.    

     Gabito precisa ir. Antes, me entrega um envelope com carta dirigida a  mim. Na realidade sem data, que começa e termina com travessão.

- Querida Gabriela, fico triste por você interpretar meu recente gesto de carinho como uma tentativa de ter a palavra final. Para lhe provar que não foi assim, imaginei um diálogo entre nós. Nesse diálogo, o último travessão é seu. Desabafe, escreva nele o que quiser. Dê o fecho, alegre ou triste, à nossa conversa. A última palavra será sua. Beijos já saudosos, Letícia.
- ...

     Dobro o papel e guardo. Não escrevo nada. travessão é recurso de voz, eu sei. Mas prefiro terminar assim. A outra dama do tabuleiro vitoriosa. Tendo e me oferecendo com generosidade a última fala.    


A Última Fala, págs.369-370 em Doce Gabito. Ed. Record 2012    

                                                

           


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.