Os dias que se seguiram à última Assembleia das Crianças Inadequadas foram meio tristes, porque nós isolamos o menino que tinha inventado a história de que as mulheres têm vazamento de sangue. Ele ficou tristinho, sozinho. E nós também ficamos chateados, porque é muito ruim ter que deixar alguém de lado... Mas, fazer o quê?
Outro fato veio nos trazer preocupação: ficamos sabendo que a Protetora do Jardim Pinheiro estava muito doente. Ela era uma mulher de pele escura, bastante idosa e muito querida por todos, pois era benzedeira. O nome dela era Dona Fia. Ficamos preocupados! O que seria das crianças daquela área sem a proteção dela?
É assim! As pessoas envelhecem e, um dia, partem...
Contudo, soubemos que outra Protetora estava sendo preparada para quando Dona Fia partisse. E eu, em particular, fiquei muito feliz; pois quem iria nos auxiliar seria a minha Tia Isabel, meia-irmã do meu pai. Foi assim que, em certa tarde bastante fria, encontramos a Tia Isabel próximo à igrejinha de São Sebastião. Pedimos a bênção para a tia, ela e minha mãe se cumprimentaram e ficaram conversando, enquanto brincávamos na calçada. De repente, o Noel e Beta começaram a disputar uma tampinha de garrafa. Minha mãe se afastou para fazer a mediação do conflito. Com o afastamento da mãe, a tia se aproximou de mim e falou:
- Vocês não deveriam ter desprezado a amigo de vocês! Amanhã vocês terão a devida explicação do fato!
Aquelas palavras me encheram de expectativa! Que explicação seria aquela??
Amanheceu o dia. Esperei as colegas de caminhada para irmos juntos à escola: a Silvânia e a Dulcineia. Pelo caminho, outras crianças iam se juntando ao grupo, intensificando a alegria e as brincadeiras.
A aula transcorreu tranquila. Durante o recreio, brincamos de pega-pega. Próximo ao término do intervalo, quis comprar um pirulito de caramelo, da marca “Zorro”, que eu adorava! Ao lado da escola, ficava a mercearia do Seu Aníbal. Havia muitas crianças na cerca da escola, dando bastante trabalho ao atendente da mercearia, que tinha que atravessar a rua, pegar o nosso dinheiro e depois trazer a guloseima. Acabei ficando por último para ser atendido. Dei as moedas ao atendente e fiz o meu pedido: “Um zorro!”. Nisso, a sineta que ordenava o retorno às salas de aula soou! E agora!?
Cansado, o atendente atravessou vagarosamente a rua, demorou-se no interior da mercearia. E quando saiu, foi parado por uma mulher grávida que pedia uma informação. Eu suava de ansiedade e de medo, porque todas as crianças já se dirigiam para as salas de aula. Para piorar, avistei muitos ciganos nas proximidades. Eu tinha medo de ciganos, porque a Vó nos alertou que eles raptavam crianças.
A mulher grávida pediu alguma coisa ao atendente da mercearia e ele retornou ao interior da venda, com o meu Zorro nas mãos. Quase chorei de desespero! O pátio já estava vazio e não havia mais nenhuma criança fora das salas.
- Que mavioso!! Nunca he visto una mã quale esta, me gajon!! Masi tudo o que ha começado, fue abandonado! Non completou cosa alguna, me gajon!
Era uma velha cigana, que havia agarrado o meu pulso com uma mão e com a outra, afastava os meus dedos, impedindo que eu os fechasse!
- Oh! Muitas trevas! Trevas mui fundas! Mas tamém, muitas luces! Luces das estelas!! Quene és tu, me gajon?
Já chorando, não só por causa medo, mas também pela pressão que a mão dela exercia no meu pulso, fechei os olhos e gritei alto!
- Socorrooooooooooooooo!
Ao abrir os olhos, só avistei o atendente da mercearia que segurava o pirulito, esperando que eu o pegasse! Peguei o meu doce e corri para a sala de aula, sem entender o que havia acontecido há pouco.
Chegando na minha sala, a porta já estava fechada! As lágrimas vieram de novo, já que por chegar atrasado, receberia alguma punição: beliscão, puxão de orelha, croque ou ficar de pé em frente ao quadro. Exitei! Fiquei parado... Do outro lado do corredor, a porta de uma sala estava aberta e uma menina muito loira, chamada Rosa, me olhava com olhos arregalados. Ela estava com o rosto muito vermelho e as lágrimas desciam. Da cadeira dela, também desciam finos filetes de sangue que escorriam pelas pernas. Ela começou a soluçar alto. Logo, as meninas maiores se levantaram e fizeram um círculo, uma muralha compacta em torno da Rosa! Começou, então, um furdunço! A professora da turma saiu correndo para procurar a Dona Sebastiana, a servente. As crianças ficaram agitadas, falando alto. As outras professoras abriram as portas de suas salas para saber o que estava acontecendo.
E a pergunta começou a correr pelo corredor:
- Quem tem um absorvente aí?
Na sala, as meninas maiores continuavam unidas, abraçadas, formando um círculo impenetrável em torno da Rosa. Dona Sebastiana trouxe um pano branco, limpo, que foi entregue a uma das meninas do círculo. De repente, o círculo de aço começou a se mover, sem se desmanchar, conduzindo a Rosa até o banheiro das meninas.
A minha professora foi até a bolsa dela e saiu com um pacote que foi levado até o banheiro. Aproveitei a deixa e entrei na sala rapidamente. Sentei no meu lugar e fiquei aliviado, havia escapado do castigo.
Durante o resto da aula, a professora não conseguiu impedir os cochichos: “Rosa ... Menstruação ... Absorvente...” Quem era a Rosa, eu sabia; mas o que seria “menstruação” e “absorvente”?
Na hora da saída, o pai da Rosa a esperava. Ela havia trocado de roupa e saiu correndo para abraçá-lo. Ele trazia um belo ramalhete de rosas vermelhas! Todas as meninas, as professoras e as demais funcionárias da escola começaram a aplaudir a Rosa. Ela, então, segurando a mão do pai com uma das mãos e o ramalhete na outra, sorriu lindamente.
De volta para casa, os meninos mais velhos foram explicando aos menores o que era a tal da menstruação e o que era o tal do absorvente. Era algo natural das mulheres, mas nós, os pequenos, não sabíamos. Assim, eu e as demais crianças inadequadas fomos abraçar o menino inadequado que já havia nos prevenido de que aquilo era coisa da vida mesmo. Abraçamos ele, o beijamos e demos a ele as nossas figurinhas, bolinhas de gude, tampinhas de garrafas e insetos mortos. Ele nos perdoou e seguimos felizes para nossas casas.
Naquele dia, a mãe tinha ido fazer faxina na casa da patroa; por isso, fui para a casa da Vó Dina. Ao chegar, a Vó se assustou:
- O que é isso no seu braço, Léo?? Quem fez isso!?
Havia manchas muito roxas! Os dedos da cigana ficaram impressos no meu pulso, bem como as marcas das unhas, que haviam penetrado na minha pele!
- Nada não, Vó! Foi nas brincadeiras da escola!
Ainda bem que era inverno, passei duas semanas usando blusa de manga comprida para a mãe não ver o meu braço. Porém, as palavras da cigana não saíam da minha memória;
- Quene és tu, me gajon!?
Leia também: A Assembleia das Crianças Inadequadas (1.2.2021)
Imagem enviada pelo autor.
Que bela narrativa! O autor aborda um tema delicado com lirismo e leveza, sem deixar de ser denso e profundo. Antônio Neto é um escritor que merece e precisa ser lido!
ResponderExcluirCaro amigo, Edelson Nagues! Ser lido por um escritor como você, é uma honra!! Muito agradecido!
ExcluirExcelente 👏😀👏😀👏
ResponderExcluirProfessora Regina Peccini! Ser lido por você me honra muito! Um abraço para Cachoeiro de Itapemirim!!
ExcluirNossa que lindo , amei.Parabéns vc é excelente!!
ResponderExcluirAgradecido! A sua leitura me honra!
Excluir