. Quem não lhe devia um favor, uma bênção, o socorro na hora do parto, uma garrafada ou mesmo sua intervenção direta perante as autoridades?
Fosse pobre ou fosse rico, todo cidadão ou cidadã mateense sabia quem era Maria do Cricaré e sabia respeitar a sua presença. Embora fosse muito pobre, parecia ser uma rainha africana. A majestade estava nos seus gestos, na sua voz e nas palavras que saíam da sua boca. Mesmo as famílias mais racistas da elite mateense tratavam aquela mulher singular com o devido respeito.
Agora, com a notícia de sua morte, a cidade estava paralisada. Parecia que o sol interrompera o seu trajeto no céu e que o vento já não soprava. E, temendo que o banzo tomasse conta da população, as autoridades procuraram apressar o enterro da anciã. Procuraram saber da família. Estavam todos espalhados pelo sul da Bahia, norte de Minas e pelos arredores de Vitória. Em São Mateus só havia uma sobrinha, que era surda, e não pôde responder as perguntas necessárias para providenciar o sepultamento. Foram ao cartório e descobriram que não havia registro do seu nascimento. Sem certidão de nascimento, nem outro documento, como fazer o atestado de óbito?
Os vizinhos e a sobrinha surda só sabiam informar o seguinte:
- Ela nasceu no ano em que o rio Cricaré transbordou e não passava ninguém de um lado para o outro. E também foi no ano em que o raio matou o Manelão, capataz de Seu Peixoto Barros.
As cheias do Cricaré sempre foram constantes, a qual delas as pessoas estavam se referindo?
A família Peixoto Barros foi procurada e ficou-se sabendo que o Manelão, ex-capataz da fazenda, havia sido atingido por um raio sim, mas havia sido no tempo do Imperador Dom Pedrinho, filho de Dom Pedrão. Contas foram feitas (noves dentro, noves fora), chegaram à conclusão de que ela vivera 82 anos e por não ter nome nem no cartório nem no batistério; no atestado de óbito constou o nome consagrado pela população: Maria do Cricaré, 82 anos, causa da morte: morte natural. Ponto.
Ponto nada. O sururu estava apenas começando. Sinh’Ana de Castro fez questão de comprar uma sepultura para Maria do Cricaré, mas só que (não se sabe se foi por engano ou se foi de caso pensado) comprou a dita sepultura no lado do cemitério que era reservado aos brancos. Oh! Sim, o cemitério de São Mateus era dividido: um lado para os brancos e outro para os negros. E a cidade começou a fumegar, as pedras da ladeira do Porto começaram a tremer e gemer. As águas do rio Cricaré começaram a recuar: em vez de se dirigirem para o oceano, começaram a retroceder para o continente.
- Maria do Cricaré vai ser enterrada no lado dos brancos!!
Não teve morador que não saísse de casa para ver a o que iria acontecer. Em São Mateus, poderia até chover canivete, mas não se enterrava negro no lado reservado aos brancos. O cortejo fúnebre iria sair da casa da defunta, lá perto do rio Mariricu. E foi juntando gente que parecia um formigueiro. Os povos de terreiro saíram carregando o esquife, cantando cantos d’África. Toda aquela gente preta vestida de branco lembrava uma revoada! A eles, se juntaram os católicos das irmandades mateenses. Muitas freiras que ousaram desafiar o farisaísmo do tempo se uniram à inusitada comitiva.
De longe chegavam charretes, cavaleiros e amazonas vindos de Conceição da Barra, de Linhares e dos confins dos quilombos perdidos nos labirintos das matas! Como a notícia se espalhara tão rápido!?
Já chegando aos arredores da zona urbana, dos dois lados da estrada, os fiéis das igrejas evangélicas louvavam, aplaudiam, jogavam pétalas de flores sobre o esquife. E a multidão afluía rumo ao cemitério.
O que não sabiam, é que - lá -, outra multidão esperava. Eram aqueles que eram contra aquele disparate, aquela ideia comunista: enterrar negros ao lado dos brancos. À frente dos defensores dos valores tradicionais de São Mateus, estava um tal de Amâncio Serafim, que se dizia filósofo, astrólogo e professor de Latim. Ao redor dele, apoiando a manutenção da pureza do solo fúnebre mateense, dezenas de famílias brancas que não aceitavam a velha Maria do Cricaré como vizinha no subsolo.
Haveria sangue nas ruas! O efetivo policial não estava preparado para uma batalha daquelas. As autoridades não viam solução...
Era 15 de março de 1973. O séquito que trazia os restos mortais de Maria do Cricaré se aproximava. Amâncio e seus seguidores empunharam as espingardas. Os urubus se juntaram no céu, formando um círculo perfeito. O cheiro de pólvora e de sangue era iminente...
Só não aconteceu uma mortandade porque um homem negro, de terno e gravata, se colocou à frente do séquito. Perante ele, Amâncio e seus soldados baixaram as armas e se retiraram. Era Amocim Leite, primeiro prefeito negro de São Mateus.
E sob aplausos, vivas, aleluias e Epa hei!; Maria do Cricaré foi enterrada no lado dos brancos. E, assim, aquela lei não escrita foi derrubada e revogada.
👏🏽👏🏽👏🏽
ResponderExcluirAgradecido, Tiago!
ExcluirAchei lindo!!! Excelente trabalho
Excluir👏👏👏 Parabéns!!! Meu amigo Antônio, lindíssimo texto 👏👏👏👏Saudades
ResponderExcluirAgradecido! A sua leitura me honra muito!
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluirAgradecido, Luiza Neiva! A sua leitura me honra muito!
ExcluirParabéns, muito sensato o texto e infelizmente retrata realidade ainda nos dias de hoje, o racismo, conte comigo até determinado ponto, e que bom que aqui venceu o bom censo que seja assim sempre
ResponderExcluirAgradecido! A sua leitura me honra muito!
ExcluirMagnífico👏🏿👏🏿
ResponderExcluirAgradecido, Camily Pereira!
ExcluirE viva a resistência!
ResponderExcluirAgradecido!
ExcluirÉ de desafios assim que se constrói a resistência!
ResponderExcluirÉ de desafios assim que se constrói a resistência!
ResponderExcluirAgradecido, Herbert Farias!
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