Pular para o conteúdo principal

O Enterro de Maria do Cricaré, Antonio Neto


A notícia da morte de Maria do Cricaré se espalhou como fogo no mato seco por toda a São Mateus
. Quem não lhe devia um favor, uma bênção, o socorro na hora do parto, uma garrafada ou mesmo sua intervenção direta perante as autoridades?

Fosse pobre ou fosse rico, todo cidadão ou cidadã mateense sabia quem era Maria do Cricaré e sabia respeitar a sua presença. Embora fosse muito pobre, parecia ser uma rainha africana. A majestade estava nos seus gestos, na sua voz e nas palavras que saíam da sua boca. Mesmo as famílias mais racistas da elite mateense tratavam aquela mulher singular com o devido respeito. 

Agora, com a notícia de sua morte, a cidade estava paralisada. Parecia que o sol interrompera o seu trajeto no céu e que o vento já não soprava. E, temendo que o banzo tomasse conta da população, as autoridades procuraram apressar o enterro da anciã. Procuraram saber da família. Estavam todos espalhados pelo sul da Bahia, norte de Minas e pelos arredores de Vitória. Em São Mateus só havia uma sobrinha, que era surda, e não pôde responder as perguntas necessárias para providenciar o sepultamento. Foram ao cartório e descobriram que não havia registro do seu nascimento. Sem certidão de nascimento, nem outro documento, como fazer o atestado de óbito?

Os vizinhos e a sobrinha surda só sabiam informar o seguinte: 

- Ela nasceu no ano em que o rio Cricaré transbordou e não passava ninguém de um lado para o outro. E também foi no ano em que o raio matou o Manelão, capataz de Seu Peixoto Barros.

As cheias do Cricaré sempre foram constantes, a qual delas as pessoas estavam se referindo?

A família Peixoto Barros foi procurada e ficou-se sabendo que o Manelão, ex-capataz da fazenda, havia sido atingido por um raio sim, mas havia sido no tempo do Imperador Dom Pedrinho, filho de Dom Pedrão. Contas foram feitas (noves dentro, noves fora), chegaram à conclusão de que ela vivera 82 anos e por não ter nome nem no cartório nem no batistério; no atestado de óbito constou o nome consagrado pela população: Maria do Cricaré, 82 anos, causa da morte: morte natural. Ponto.

Ponto nada. O sururu estava apenas começando. Sinh’Ana de Castro fez questão de comprar uma sepultura para Maria do Cricaré, mas só que (não se sabe se foi por engano ou se foi de caso pensado) comprou a dita sepultura no lado do cemitério que era reservado aos brancos. Oh! Sim, o cemitério de São Mateus era dividido:  um lado para os brancos e outro para os negros. E a cidade começou a fumegar, as pedras da ladeira do Porto começaram a tremer e gemer. As águas do rio Cricaré começaram a recuar: em vez de se dirigirem para o oceano, começaram a retroceder para o continente.

- Maria do Cricaré vai ser enterrada no lado dos brancos!!

Não teve morador que não saísse de casa para ver a o que iria acontecer. Em São Mateus, poderia até chover canivete, mas não se enterrava negro no lado reservado aos brancos. O cortejo fúnebre iria sair da casa da defunta, lá perto do rio Mariricu. E foi juntando gente que parecia um formigueiro. Os povos de terreiro saíram carregando o esquife, cantando cantos d’África. Toda aquela gente preta vestida de branco lembrava uma revoada!  A eles, se juntaram os católicos das irmandades mateenses. Muitas freiras que ousaram desafiar o farisaísmo do tempo se uniram à inusitada comitiva. 

De longe chegavam charretes, cavaleiros e amazonas vindos de Conceição da Barra, de Linhares e dos confins dos quilombos perdidos nos labirintos das matas! Como a notícia se espalhara tão rápido!?

Já chegando aos arredores da zona urbana, dos dois lados da estrada, os fiéis das igrejas evangélicas louvavam, aplaudiam, jogavam pétalas de flores sobre o esquife. E a multidão afluía rumo ao cemitério.

O que não sabiam, é que - lá -, outra multidão esperava. Eram aqueles que eram contra aquele disparate, aquela ideia comunista: enterrar negros ao lado dos brancos. À frente dos defensores dos valores tradicionais de São Mateus, estava um tal de Amâncio Serafim, que se dizia filósofo, astrólogo e professor de Latim. Ao redor dele, apoiando a manutenção da pureza do solo fúnebre mateense, dezenas de famílias brancas que não aceitavam a velha Maria do Cricaré como vizinha no subsolo.

Haveria sangue nas ruas! O efetivo policial não estava preparado para uma batalha daquelas. As autoridades não viam solução...

Era 15 de março de 1973. O séquito que trazia os restos mortais de Maria do Cricaré se aproximava. Amâncio e seus seguidores empunharam as espingardas. Os urubus se juntaram no céu, formando um círculo perfeito. O cheiro de pólvora e de sangue era iminente...

Só não aconteceu uma mortandade porque um homem negro, de terno e gravata, se colocou à frente do séquito. Perante ele, Amâncio e seus soldados baixaram as armas e se retiraram. Era Amocim Leite, primeiro prefeito negro de São Mateus.

E sob aplausos, vivas, aleluias e Epa hei!; Maria do Cricaré foi enterrada no lado dos brancos. E, assim, aquela lei não escrita foi derrubada e revogada.


Comentários

  1. 👏👏👏 Parabéns!!! Meu amigo Antônio, lindíssimo texto 👏👏👏👏Saudades

    ResponderExcluir
  2. Respostas
    1. Agradecido, Luiza Neiva! A sua leitura me honra muito!

      Excluir
  3. Parabéns, muito sensato o texto e infelizmente retrata realidade ainda nos dias de hoje, o racismo, conte comigo até determinado ponto, e que bom que aqui venceu o bom censo que seja assim sempre

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Agradecido! A sua leitura me honra muito!

      Excluir
  4. Magnífico👏🏿👏🏿

    ResponderExcluir
  5. É de desafios assim que se constrói a resistência!

    ResponderExcluir
  6. É de desafios assim que se constrói a resistência!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard